SISTEMA PATRIARCAL E O ANIMUS TIRANO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE A PSICOLOGIA ANALÍTICA E O CAMPO DOS ESTUDOS FEMINISTAS

SISTEMA PATRIARCAL E O ANIMUS TIRANO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE A PSICOLOGIA ANALÍTICA E O CAMPO DOS ESTUDOS FEMINISTAS

Por Lara Rosa Saque

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Resumo

Na análise com mulheres, é frequente o aparecimento de um personagem interno opressor que domina a personalidade e inibe o  desenvolvimento psicológico. Esse personagem do inconsciente, definido como animus na obra de Carl Gustav Jung, foi um  conceito posteriormente revisado entre os estudiosos junguianos frente às mudanças sociais em curso e às reflexões  contemporâneas sobre gênero e sexualidade. No presente artigo, buscamos compreender de que maneira podemos relacionar a  noção de sistema patriarcal à atuação de um animus negativo e tirano no inconsciente da mulher, através de revisão bibliográfica  e construção de um diálogo possível entre a Psicologia Analítica e o campo dos estudos feministas. Entendemos que esse  personagem do inconsciente pode ser o portador de um poder simbólico, derivado da cultura e dominação masculina inerente ao  patriarcado, e que sua voz pode e deve ser discriminada da personalidade da mulher e das demandas de sua individuação.

Introdução

O termo patriarcado (ou sistema patriarcal) é utilizado para indicar um sistema de dominação masculina sobre as mulheres,  abarcando todos os níveis de organização social, desde a esfera familiar ou o âmbito trabalhista, até o Estado e a política. A  hegemonia masculina foi construída e consolidada ao longo de um processo sociohistórico no qual ocorreu também a dissolução  dos mistérios míticos em torno do feminino e uma desvalorização da representação de mulheres, inicialmente associadas a  divindades poderosas e criadoras. Atualmente, embora cresça o acesso das mulheres ao ensino e ao mundo do trabalho, bem  como sua ascensão no meio social para além do ambiente doméstico, a dominação masculina segue enraizada no coletivo e  inscrita nos corpos, influenciando a construção da subjetividade na mulher. Nesse sentido, podemos pensar e discutir sobre a inscrição de um poder simbólico que ainda orienta e normatiza subjetividades sob a lógica do sistema patriarcal, conforme  pretendemos desenvolver adiante.

Ao abordarmos a psique feminina sob a ótica da Psicologia Junguiana, encontramos o conceito de animus como a “experiência  interior do outro masculino” formada primariamente pela experiência com o pai pessoal, bem como pelas inscrições do  inconsciente coletivo. Uma figura interna de natureza dual e expressa em inúmeras imagens nos mitos e na fantasia, como a  figura de Hades ou do Barba Azul. Na obra de Carl Gustav Jung e autores/as pós-junguianos, são muitas as referências à autonomia desse personagem psíquico, que pode se apoderar da consciência e dirigir pensamentos e sentimentos. Em seus  aspectos negativos, o animus pode atuar como crítico, juiz, sádico ou tirano na psique da mulher, experimentado como uma voz  ou atitude interior que oprime o desenvolvimento feminino e induz a sentimentos de culpa e inadequação. Essa voz ou atitude  interna opressora é encontrada em abundância na experiência clínica com mulheres, onde podemos testemunhar a inibição da psique feminina criativa.

No presente artigo, desejamos compreender de que maneira podemos relacionar o conceito de sistema patriarcal à noção de um  animus negativo e tirano no inconsciente da mulher, através de revisão bibliográfica e construção de um diálogo possível entre  a Psicologia Analítica e o campo dos estudos feministas. Buscaremos, na interseção entre essas duas áreas do conhecimento e  tomando o conceito de animus como nosso fio condutor, compreender e abordar a inscrição de um poder simbólico na  construção da subjetividade feminina, a fim de ampliar nossa atuação na prática clínica e torná-la mais alinhada às reflexões  contemporâneas e às transformações sociais em curso.

1. O sistema patriarcal e a subjetividade das mulheres

Em seu livro A criação do patriarcado, Gerda Lerner define o patriarcado como um sistema de dominação masculina  desenvolvido ao longo da história para estabelecer e manter a autoridade dos homens sobre as mulheres. Um sistema, portanto,  fruto de um processo sociohistórico e não natural ou inerente a estruturas biológicas. Através de extenso trabalho documental, Lerner (2019) investiga como as sociedades patriarcais se consolidaram e justificaram a dominação masculina ao longo de  milênios, passando por temas como o controle do corpo feminino e dos recursos naturais, bem como o papel das religiões e ideologias na manutenção dessa hegemonia. Embora haja divergência conceitual sobre o uso dos termos “patriarcado” ou  “patriarcalismo” no campo dos estudos feministas, conforme discutem Morgante e Nader (2014), estes seguem como  importantes referências para indicar um sistema de dominação que abarca todos os níveis de organização social, desde a esfera familiar ou o âmbito trabalhista, até o Estado e a política.

Lerner (2019) traça uma relação entre a hegemonia masculina e o controle sobre os corpos e a reprodução das mulheres. O  controle reprodutivo seria, assim, um dos pilares que sustenta a dominação masculina no patriarcado. Gerda remonta sociedades  antigas, como da Mesopotâmia ou Suméria, e reconstrói o processo histórico que desencadeou a institucionalização do  patriarcado nas famílias e nas instituições religiosas e governamentais.

Demonstra como desde o Código de Hamurabi (no século XVIII a.C.), o corpo da mulher já aparecia como objeto de controle e  como, em sociedades antigas, a apropriação da função sexual e reprodutiva das mulheres era uma forma de estabelecer relações  econômicas anteriores à formação da propriedade privada ou sociedade de classe. O corpo da mulher despontava, assim, como a  primeira propriedade ou terreno de exploração já que “nas sociedades antigas, os homens estabeleciam transações, trocas  comerciais e pagamentos de dívidas por meio dos serviços de suas esposas, filhas e sobrinhas, tanto sexuais quanto domésticos.”  (RIBEIRO, 2021).Silvia Federici, por sua vez, concentra sua análise no contexto histórico de transição para o sistema capitalista  de produção. Para a mesma, esse foi o momento em que se consolidou o controle sobre a sexualidade e reprodução feminina,  colocando as mulheres em funções domésticas e não remuneradas. Na medida em que a posse de bens (terras, rebanhos e  recursos) torna-se central para a organização social, surge a necessidade de garantir a legitimidade da descendência para um  maior controle da herança e transmissão dos bens adquiridos dentro da linhagem masculina. Com isso, a mulher passa  definitivamente ao âmbito da “propriedade” e torna-se confinada ao ambiente doméstico, com vistas a desempenhar (de modo  controlado) seu papel reprodutivo. Retomando Lerner (2019), entretanto, vemos como a subordinação histórica das mulheres é,  na realidade, anterior e constitui a raiz da exploração de classe. Assim, apreendemos como se deu a domesticação da mulher, do  seu corpo e da concepção, temática que perpassa o livro Mulheres que correm com os lobos de Clarissa Pinkola Estés, obra  junguiana muito disseminada onde a autora busca o resgate da função instintiva feminina por meio de mitos e histórias do que  seria o arquétipo da Mulher Selvagem.

Gerda Lerner também discute o papel das religiões, das mitologias e das filosofias que ajudaram a reforçar a ideia de que o  domínio masculino sobre as mulheres era uma ordem natural e divina. A religião, segundo a mesma, foi uma das principais ferramentas utilizadas para legitimar o patriarcado, tornando a mulher um instrumento reprodutor de sua própria dominação.

Lerner (2019) se debruça sobre a narrativa bíblica (e seu simbolismo) que traz o controle sobre as mulheres, designado ao  homem, como expressão da vontade divina. O sistema patriarcal configurou-se, assim, como prática social continuamente  reproduzida e tornada hegemônica sob a égide de uma suposta legitimidade natural, biológica e mesmo divina. Conforme  podemos apreender em Campbell (1994), a transição para o patriarcado se deu de maneira não uniforme a partir de sociedades  inicialmente matrilineares; o autor aponta ainda como os diferentes sistemas míticos-rituais dessas sociedades acompanharam  essa transformação e a gradativa valorização do masculino em detrimento do feminino. Ao pensarmos a construção da  hegemonia masculina a partir desses sistemas, encontramos o artigo de Lazdan et al. (2014) que também abordam o tema  tomando como referenciais o sociólogo Pierre Bourdieu e a autora Juçara T. Cabral em seu livro A sexualidade no mundo
ocidental.

Cabral (1995) aponta como os mitos de criação são frequentemente usados para legitimar e justificar estruturas de poder e  dominação, incluindo a subordinação das mulheres.

Transmitidos ao longo de gerações e repletos de simbolismo e narrativas sobre a origem domundo, estes possuem um poder  formativo profundo nas sociedades. Muitos mitos de criação, como o judaico-cristão, trazem a representação da mulher como  secundária ou derivada do homem, construção simbólica que acaba servindo de base para a naturalização da desigualdade de  gênero. Mas nem sempre teria sido assim. A autora observa como a evolução dos mitos de criação acompanha a transição para o  patriarcado: antes com a origem do mundo a partir de uma deusa; gradualmente, com um deus inserido nessa participação e caminhando para a representação de um único deus masculino na mitologia judaico-cristã, a mulher somente como receptáculo.

De acordo com Cabral (1995), esta seria uma dissolução histórica do poder mítico do feminino e de seus mistérios em torno da  menstruação e procriação.

No livro A Grande Mãe, Neumann (2006) também observa os antigos mistérios ligados ao feminino: desde as esculturas da  Grande Mãe na Idade da Pedra, passando pelas deusas gregas da antiguidade clássica, até o mundo matriarcal na América e as  primitivas deusas do México, Peru e etc. À medida que as sociedades ocidentais se tornam mais patriarcais, assistimos a um  deslocamento e desvalorização da representação de mulheres, inicialmente associadas a figuras míticas poderosas ou criadoras  (CABRAL, 1995).

Conforme Ribeiro (2021) discute a partir do trabalho de Gerda Lerner: “Se antes elas eram tidas como deusas da fertilidade ou  deusas mães em seus cultos, com a reestruturação do sistema religioso elas perderam não apenas espaço para o Deus único como também o direito de o cultuar” (RIBEIRO, 2021).

Retomando o artigo de Lazdan et al. (2014), vemos como o sociólogo Pierre Bourdieu sinalizou a permanência dos esquemas de  dominação masculina apesar das gradativas mudanças que vamos observando: o maior acesso das mulheres ao ensino secundário e superior, sua entrada no mercado de trabalho e ascensão no meio social para além do ambiente doméstico, bem como sua maior autonomia quanto ao próprio corpo. Entre os alicerces que sustentam e reproduzem o poder masculino, o artigo cita a Igreja e a  inscrição de uma intensa negatividade sobre o feminino, agindo de forma simbólica nas estruturas inconscientes. A partir dos  referenciais utilizados, os autores concordam que a dominação masculina (ou visão patriarcal, como nos referimos na Psicologia  Junguiana) está fortemente enraizada no coletivo e inscrita nos corpos (LAZDAN et al, 2014).

Assim também concluem Souza e Calais (2019) ao discutirem sobre a construção da subjetividade da mulher sob a lógica do  sistema patriarcal, a partir de importantes referências como Simone de Beauvoir, Judith Butler e Michel Foucault. As autoras  consideram relevante abordarmos, nos dias atuais, a existência de um ideal feminino que orienta subjetividades enormatiza comportamentos, através de discursos dominantes que fundam uma violência subjetiva, um poder simbólico que fabrica  indivíduos e torna os mesmos objetos e instrumentos do seu exercício. Observamos como o pensamento das autoras vai ao  encontro da afirmação de Gerda Lerner de que as mulheres se tornam instrumentos reprodutores de sua própria dominação.

Visando compreender a construção dessas subjetividades e a atuação desse poder simbólico na psique feminina, passaremos a  adentrar o pensamento de autoras e autores junguianos, traçando uma ponte possível entre o campo dos estudos feministas e a Psicologia Analítica.

2. O animus como experiência interior do outro masculino

A partir da obra junguiana, Barbara B. Koltuv traz o conceito de animus como a “experiência interior do outro masculino” na  psique da mulher, um personagem do inconsciente forjado pela experiência com o pai pessoal e pelas inscrições arquetípicas do inconsciente coletivo (KOLTUV, 2020). M.L.von Franz aborda a natureza dual dessa figura psíquica e suas numerosas imagens  presentes nos mitos e na fantasia, como a figura de Hades ou do Barba Azul (VON FRANZ, 2016). Murray Stein, por sua vez,  destaca a função de animus como um mediador ou ponte entre a consciência individual da mulher e as imagens do mundo interior (STEIN, 2006). Barbara Hannah, na obra The Animus: The Spirit of Inner Truth in Women (ainda não traduzida para o  português), também destaca a função de animus como essa figura mediadora entre a mulher e seu inconsciente; a mesma o define como o espírito da mulher, sua mente inconsciente, ligado ao princípio do Logos (HANNAH, 2011).

No capítulo intitulado “O caminho para o interior profundo”, Stein (2006) aborda como Jung (em suas obras mais recentes)  referiu-se a anima e animus como figuras arquetípicas da psique e, portanto, não derivadas da cultura. Anima(us) seria uma  estrutura complementar da persona, entre a consciência individual e o inconsciente coletivo, vinculando o ego a camadas mais  profundas da psique. A atitude de uma pessoa em relação a seu mundo interior (seja hostil ou acolhedora) seria, assim, uma  atitude de anima(us). Em seguida, Stein (2006) passa a discutir questões de gênero e sexualidade relacionadas ao conceito, mas  sustenta e enfatiza o pensamento junguiano de que a persona seria uma estrutura baseada em valores coletivos, enquanto o  encontro do ego com anima(us) (como ponte para o Si-mesmo) possibilitaria o desenvolvimento psicológico. Sustenta, portanto,  anoção de anima(us) como imagens primordiais e relativamente estáveis que realizam a mediação entre o ego e o inconsciente.

Sob a perspectiva de Hannah (2011), a integração de animus permitiria à mulher maior clareza sobre o que ela realmente pensa,  particularizando suas concepções e a distanciando de noções generalistas ou absolutistas, conforme encontramos também na obra de Jung. Koltuv (2020), por sua vez, descreve como essa figura psíquica (em seu aspecto positivo) pode oferecer foco, direção,  encorajamento e proteção, favorecendo o movimento da consciência e a iniciativa no mundo. Entretanto, aborda como frequentemente as mulheres encontram o animus em seus aspectos negativos, como crítico, juiz, sádico ou tirano: o chamado  “ataque de animus”. Von Franz (2016) também discorre sobre a possibilidade desse complexo, por sua autonomia, se apoderar da consciência e dirigir pensamentos e sentimentos. Aqui, destacamos um ponto fulcral do pensamento de Carl Gustav Jung, desenvolvido posteriormente por outros autores: a sobrepujação da consciência (e, portanto, do ego) pela força e autonomia das  figuras do inconsciente.

O chamado “ataque de animus” constitui (e pode ser ouvido como) uma voz ou atitude interior excessivamente crítica ou  negativa (KOLTUV, 2020). Do ponto de vista corporal, sua atuação pode ser sentida como tensão, dor e rigidez nos ombros,  costas, pescoço e cabeça. O animus negativo conta à mulher como ela deve se sentir e se comportar, com opiniões que a  violentam e informam do seu desvalor e incapacidade. Sob esse ataque, a mulher sente-se como criança ou filha, constantemente  pressionada, indigna e culpada. A atuação nociva dessa figura psíquica pode assumir formas extremas, como as possessões espirituais na Idade Média relatadas por Hannah (2011) ou o amante ciumento (projetado ou não) que destrói a possibilidade da  mulher construir relacionamentos saudáveis. São muitos os sintomas dessa atuação, como o sentir-se presa, vitimada, isolada ou  sob a constante ruminação de ideias e fantasias obsessivas. Contudo, é possível refletirmos como “a falta de atuação do ego da  heroína, o fato de ela não escolher, não exprimir, não discriminar é que é o verdadeiro vilão” (KOLTUV, 2020, P.77).

Também podemos pensar o conceito de animus à luz das reflexões contemporâneas acerca de gênero, conforme Tancetti e  Gimenez (2022) na obra Psicologia Pós-Junguiana e debates contemporâneos de gênero e sexualidade. As autoras abordam a  continuidade e o distanciamento crítico dos estudiosos pós-junguianos em relação à teoria clássica desenvolvida por C.G.Jung e  destacam, entre os pontos mais amplamente revisados, a noção de gênero masculino e feminino. Jung, filho de seu tempo e  contexto social, fincou as raízes da contrassexualidade (e portanto, de anima e animus) no sexo biológico e desenvolveu  uma visão particularmente enviesada da psicologia da mulher. A conceituação de gênero (e sua distinção do sexo biológico), debatida  em obras como Problemas de gênero de Judith Butler, tornou necessária uma dessencialização dos princípios feminino e  masculino na psicologia de homens e mulheres. Com isso, autores pós-junguianos ocuparam-se de revisar a noção essencializada da contrassexualidade de anima/animus. No âmbito desta revisão, nasce a concepção de que os princípios feminino e masculino  habitam a psique humana de maneira independente do gênero, se afastando do binarismo da teoria junguiana clássica.

A postura crítica de James Hillman concentrou-se na premissa de que a anima não é uma prerrogativa masculina e não poderia  ser limitada à psicologia específica dos homens.

Sob sua perspectiva, anima e animus habitam a psique de homens e mulheres, como arquétipos; desvinculando esses conceitos,  portanto, da noção de contrassexualidade proposta por Jung e de uma noção essencialista de gênero (TANCETTI; GIMENEZ,  2022). Susan Rowland, por sua vez, também buscou pensar sobre o gênero no âmbito da teoria junguiana sem recair no  essencialismo. Para a mesma, as definições clássicas de anima e animus foram antecipatórias de uma desconstrução das noções  de homem e mulher. Ao questionar sobre a possibilidade de um feminismo junguiano, Rowland (2002) aproxima a teoria  junguiana da pós-modernidade. buscando um distanciamento crítico sem afastar-se completamente de seus fundamentos.

Na obra Jung: Uma revisão feminista, Rowland (2002) observa como o conceito de animus foi mais bem elaborado por  escritoras mulheres e dedica uma sessão a revisar esse conceito. Passa por Emma Jung, que permaneceu fiel à noção de animus  como o portador do Logos para a mulher, mas enfatizou o valor positivo de sua integração para o desenvolvimento de autoridade e atividades intelectuais. Sobre o trabalho de Irene Claremont de Castillejo, discute como essa ampliou a descrição dos aspectos  negativos de animus e os considerou coloridos por determinantes socioculturais: a voz desse personagem do inconsciente seria  uma internalização da agressividade masculina contra as mulheres. Em Polly Young-Eisendrath e Florence Wiedemann encontra uma reinterpretação da teoria junguiana clássica em causa do empoderamento feminino, semelhante aos estágios terapêuticos de integração do animus propostos por Emma Jung. Por fim, cita a análise histórica de Claire Douglas e sua abordagem de animus  não como Logos e intelecto, mas como mediador da função sentimento na mulher. A respeito do pensamento de Douglas, Rowland (2002) acrescenta:

“Douglas faz parte de uma tradição fortemente argumentativa de mulheres escritoras junguianas que caracterizam o animus negativo como a voz do patriarcado internalizado e danificador da psique feminina. Ela se mantém na  órbita da ‘grande teoria’ ao manter os conceitos de anima e animus como teorias do outro ‘interno’. Apesar disso, o trabalho dela fortalece a valiosa tendência de inclusão de fatores sociais e culturais na extensão e revisão de gênero dentro da psicologia junguiana.” (ROWLAND, 2002, P.107).

Parisi (2017) observa como anima/animus é um dos temas mais controvertidos da obra junguiana na atualidade, frente às transformações sociais em curso, e convida para a necessária tarefa de compreender animus para além de preconceitos de gênero  e culturais. A autora traz as formulações iniciais de Jung sobre anima/animus como complexos psíquicos complementares à  persona e o desenvolvimento do conceito em textos posteriores, como em Aion, quando Jung os sintetiza e define como imagens arquetípicas. Embora haja consenso sobre o pioneirismo da teoria junguiana em admitir a noção de uma contra-sexualidade (o potencial de cada sexo desenvolver aspectos de seu oposto), Jung apresentava uma visão bastante limitada e tendenciosa de  animus e da psicologia feminina, concernente com sua época; enquanto Emma Jung, por sua vez, trouxe uma visão mais  solidária e fiel à experiência das mulheres (PARISI, 2017). No mesmo artigo, encontramos uma crítica atual e necessária ao  modo como Jung relacionava Eros à psicologia das mulheres e Logos aos homens, restrição que não cabe mais na  contemporaneidade. E destacamos, ainda, alguns questionamentos trazidos pela autora no sentido de compreender o feminino e a figura de animus de modo mais abrangente:

“[…] como ficam as mulheres de hoje que são guerreiras em seus trabalhos e em suas casas? O fato de terem um dinamismo mais  ativo ou mais yang em suas personalidades seria fruto do animus? Seriam vistas como possuídas pelo animus, ou  identificadas com o animus? Ou seriam características de um aspecto mais dinâmico inerente ao próprio feminino, como mostram as imagens arquetípicas das deusas virgens Ártemis e Atena? Eis um tema que mereceria mais discussão” (PARISI, 2017)

3. Diálogos possíveis: o animus  negativo e a internalização do patriarcado

Ao buscarmos traçar uma relação entre a noção de sistema patriarcal e a atuação de um animus negativo e tirano no inconsciente  da mulher, nos deparamos com uma revisão histórica do conceito de animus empreendida no campo da Psicologia Analítica, em  vista das reflexões contemporâneas sobre gênero e sexualidade. Assim, vemos que a definição e abordagem do conceito não é  fechada ou consensual entre os estudiosos junguianos, mas sofre modificações que se afastam mais ou menos do pensamento  original de Jung acerca desse personagem do inconsciente. Se no pensamento original, como vimos em Murray Stein, animus é tido como uma figura arquetípica e contrassexual, relativamente estável e não derivada da cultura, estudiosos pós-junguianos se afastam da formulação inicial e admitem outros elementos. Para James Hillman, anima e animus são figuras arquetípicas, mas não contrassexuais, ou seja, habitam a psique de homens e mulheres, abordagem que se encontra no contexto maior de revisão de gênero dentro da psicologia junguiana.

Se em autoras mulheres, como Von Franz ou Barbara Hannah, encontramos uma visão mais conservadora, outras estudiosas  agregam elementos da cultura em sua visão de animus.

Como vimos em Jung: Uma revisão feminista, autoras como Claire Dougas ou Irene Claremont de Castillejo abordam o animus  negativo como a voz do patriarcado internalizado e danificador da psique feminina, representando o que Susan Rowland chamou de uma “valiosa tendência de inclusão de fatores sociais e culturais na extensão e revisão de gênero dentro da psicologia  junguiana” (ROWLAND, 2002, P.107). Entretanto, precisamos compreender e discutir o que a admissão de fatores culturais em  animus significa à luz da teoria original de Jung. Significa admitir animus como uma figura menos estável ou arquetípica e mais  próxima ao inconsciente pessoal? Admitir um animus que deriva da cultura? A abordagem de animus como um “outro”  internalizado que pode refletir a voz da dominação patriarcal implica considerar essa derivação da cultura e de fatores históricos  e sociais. Todas essas considerações levantam mais questionamentos do que conclusões acerca desse personagem do inconsciente.

Seria esse personagem o portador de um poder simbólico que atua na construção da subjetividade feminina? Se, de acordo com  Gerda Lerner, a mulher atua como instrumento de sua própria dominação e se persistem os mecanismos sutis de dominação  masculina, apesar das transformações sociais em curso, como podemos pensar a atuação de um animus negativo sob esse  colorido histórico e cultural? A prática clínica frequentemente nos mostra a voz de um patriarcado internalizado e danificador da  psique feminina, que inibe o desenvolvimento psicológico ao mesmo tempo que impele a construção de uma jornada heróica. Observo também como o degelo das imagens oriundas de um complexo paterno negativo frequentemente reflete no abrandamento desse “outro” psíquico que oprime o desenvolvimento da mulher, o que nos remete à participação do pai na  formação do animus.

Ao longo de minha jornada como psicoterapeuta, venho me deparando com esse personagem do inconsciente e suas falas depreciativas que fazem as mulheres sentirem-se continuamente culpadas, diminuídas e incapazes. Ao questionar a raiz dessa  voz, sua origem, frequentemente sou levada a conteúdos e lembranças de um complexo paterno negativo das pacientes, em toda sua tonalidade afetiva e prejuízo para a psique criativa.

Ainda que seja necessária uma revisão conceitual à luz das transformações atuais, construir uma prática clínica alinhada com  essas transformações é tarefa para o agora, o que nos leva a retomar o texto de Parisi (2017). Seria esse o grande desafio na  análise com mulheres: “discriminar se a voz que fala internamente é dela mesma ou de um animus, com frequência acusador e  crítico” (PARISI, 2017), ou seja, discriminar essa voz interna opressora para encontrar a voz do sujeito e as demandas da sua  individuação. A autora prossegue em suas reflexões propondo uma prática que auxilia a despotencializar esse personagem do inconsciente, identificando suas falas, personificando e nomeando esse padrão de funcionamento negativo. Um caminho possível para essa despotencialização seria a escrita: uma lista com todos os “deverias” oriundos dessa voz interna e, em seguida, uma  carta dirigida a esse animus, a fim de estabelecer um diálogo interno. Uma relação mais direta e consciente com o animus seria,  assim, o caminho para evitar que a personalidade seja tomada pelo aspecto negativo e opressor dessa figura do inconsciente.

Considerações finais

Na análise com mulheres, é inegável o frequente aparecimento de um personagem interno opressor que domina a personalidade e inibe o desenvolvimento psicológico. Na obra de Carl Gustav Jung, esse personagem foi definido como animus, um conceito posteriormente revisado entre os estudiosos junguianos frente às mudanças sociais em curso e às reflexões contemporâneas sobre gênero e sexualidade. No âmbito desta revisão, autoras como Claire Douglas ou Irene Claremont de Castillejo abordam o animus negativo como a voz de um patriarcado internalizado e danificador da psique feminina, admitindo, portanto, fatores derivados da  cultura na formação desse personagem do inconsciente. Essas e outras tantas abordagens de animus, refletem como esse não é  um conceito fechado entre ospós-junguianos, sofrendo modificações que se afastam mais ou menos do pensamento original de  Jung: ora tomado como imagem mais estável e arquetípica, ora como derivado da cultura e mais próximo da experiência pessoal.

Longe de esgotar esses questionamentos, o presente artigo aponta para a necessidade de aprofundarmos nossa compreensão  sobre como é formado esse personagem do inconsciente e qual a sua relação com o poder simbólico do patriarcado na psique  feminina. E entendemos que, embora seja necessária uma revisão conceitual de animus no âmbito da Psicologia Analítica, a  prática clínica acontece no presente e não espera, devendo se tornar mais alinhada às necessidades das mulheres na atualidade.

Assim, independente da origem de animus ou de como este é formado no inconsciente, sua voz deve ser discriminada da personalidade da mulher e das demandas da sua individuação.