
20 mar ALÉM DO AMOR ROMÂNTICO: O CASAMENTO COMO CATALISADOR DO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO
por Giselle Cupertino Lima dos Reis
Resumo
O objetivo deste trabalho foi investigar como o casamento pode atuar como um catalisador no processo de individuação, considerando tópicos da psicologia analítica junguiana. Inicialmente, aborda-se o casamento como um espaço simbólico para o confronto com a psique. A análise de Eros e Psique reflete a relação entre a busca pelo outro e o autoconhecimento, enquanto a individuação é compreendida como a integração dos conteúdos inconscientes. Temas como sombra, Anima e Animus, complexos parentais e projeções são explorados, destacando como influenciam a dinâmica conjugal e refletem aspectos não resolvidos. A análise aponta que conflitos conjugais podem impulsionar o crescimento pessoal, confirmando que o casamento, com esforço consciente, favorece a individuação.
1. Introdução: O Casamento como Espaço de Transformação Psíquica
O casamento, numa visão polarizada, pode ser amplamente idealizado pela sociedade como a expressão do amor romântico ou para muitas pessoas, uma instituição falida, hipócrita, destrutiva e restritiva, um instrumento de ordem social para condicionar e restringir a individualidade (GARCIA, 2023, p.77). Portanto o casamento carrega em sua essência uma complexidade que vai muito além do plano afetivo.
Na perspectiva da Psicologia Analítica, a união conjugal é um campo arquetípico onde se desenrolam processos profundos de interação entre os aspectos conscientes e inconscientes dos parceiros. Conflitos, projeções e desafios vivenciados no dia a dia da relação frequentemente revelam partes ocultas da psique, tanto individuais quanto coletivas, tornando o casamento um cenário fértil para o autoconhecimento e a transformação pessoal. Nesse sentido, o vínculo conjugal pode ser entendido como uma oportunidade única para que cada cônjuge enfrente seus próprios conteúdos psíquicos e avance em direção à integração e à realização do self.
O objetivo deste trabalho é analisar como a dinâmica conjugal pode atuar como um catalisador do processo de individuação, que Jung descreve como a jornada de integração dos aspectos fragmentados da psique rumo à totalidade (JUNG, 2012, 9/1, p. 490). O casamento, por sua natureza íntima e desafiadora, expõe os parceiros a situações que demandam o confronto com complexos
parentais, projeções e aspectos sombrios de suas personalidades. Essas experiências, longe de serem meramente obstáculos, oferecem oportunidades valiosas para o crescimento emocional e psicológico. Ao longo dessa análise, será explorado como as crises conjugais e os momentos de tensão podem ser ressignificados como etapas necessárias para o amadurecimento individual e relacional.
Esse estudo busca contribuir para uma visão ampliada do casamento, destacando seu papel no desenvolvimento psíquico dos indivíduos. Em vez de ser compreendido apenas como uma relação afetiva ou um contrato social, o casamento será investigado como um espaço de transformação psicológica, onde os cônjuges, ao enfrentarem suas próprias limitações e potencialidades, promovemnão apenas o fortalecimento da relação, mas também o crescimento mútuo e a expansão da consciência. Para isso, será explorado o Mito de Eros e Psique, bem como os conceitos de Sombra, Complexos, Anima / Animus e conflitos conjugais.
O casamento, tradicionalmente visto como a expressão máxima do amor romântico, vai além da compreensão simplista de união afetiva. Na perspectiva da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, o matrimônio pode ser visto como uma das situações humanas com grande potencial de favorecer o processo de individuação (DI YORIO, 2015, p. 10). Embora amplamente reconhecido como uma instituição social e afetiva, o casamento também pode ser compreendido como um espaço fértil para a transformação psicológica, onde os indivíduos são confrontados com seus aspectos inconscientes.
Desta forma, o casamento pode ser descrito como uma relação psíquica complexa, composta por elementos subjetivos e objetivos, que exigem consciência para estabelecer uma conexão verdadeira entre os cônjuges. Jung destaca que, na ausência de consciência, não há relacionamento psicológico genuíno, apenas vínculos superficiais, como os fisiológicos (JUNG, 2014, 17, p.324). A inconsciência parcial, presente em muitos casamentos, enfraquece o vínculo psíquico. Assim, o matrimônio se apresenta como um espaço de potencial crescimento e individuação, desde que ambos os parceiros trabalhem para ampliar sua consciência e superar limitações inconscientes.
2. Eros e Psique: O Mito como Metáfora da Jornada de Individuação
Apresento o mito de Eros e Psique, numa perspectiva que amplia a compreensão sobre os processos internos da psique humana, especialmente no que diz respeito às dinâmicas do amor e relacionamento. Mais do que uma história de amor, revela o mito como uma jornada da alma em busca de integração e completude, ilustrando os desafios e as transformações necessários para alcançar a maturidade emocional e espiritual.
Apuleio (2019, p. 83), apresenta o mito com os nomes da tradição romana. Assim, Eros é chamado de Cupido, e Afrodite é referida como Vênus. A narrativa começa com Afrodite furiosa por perceber que os mortais estão prestando mais honras à beleza de Psiquê, uma mortal extraordinariamente bela, mais do que a ela própria. Ofendida, Afrodite ordena a seu filho Eros que use suas flechas para fazerPsiquê se apaixonar pelo homem mais vil e desprezível possível. Contudo, ao ver Psiquê, Eros se apaixona por ela e desobedece a ordem de sua mãe.
Enquanto isso, Psiquê, apesar de sua beleza, não consegue encontrar um marido, pois os homens a reverenciam como uma deusa, mas não ousam se aproximar. Seus pais, preocupados, consultam um oráculo de Apolo, que, influenciado por Eros, declara que Psiquê deve ser deixada em uma montanha para se casar com uma criatura monstruosa. Resignada, Psiquê é abandonada no local, mas Zéfiro, o vento oeste, a transporta para um palácio encantado onde ela é atendida por vozes invisíveis e vive cercada de luxos.
À noite, seu misterioso marido, Eros, passa a visitá-la, mas insiste que Psiquê nunca deve ver seu rosto. Ela aceita a condição e, por um tempo, vive feliz.
No entanto, suas irmãs acabam despertando nela a curiosidade. Convencida por elas de que seu marido pode ser um monstro, Psiquê decide romper a proibição.
Ela acende uma lamparina enquanto ele dorme e descobre que seu marido é, na verdade, Eros, o belo deus do amor. Contudo, uma gota de óleo quente cai sobre ele, despertando-o. Sentindo-se traído pela desconfiança de Psiquê, Eros foge, deixando-a sozinha. Portanto, como destaca Dino (2024, p.5), a experiência de Psique revela o início de uma jornada, rumo à individuação:
“A experiência de Psique com as irmãs mostra-nos a ambivalência das relações familiares no processo de desenvolvimento psíquico. As irmãs instigaram-na para que ela tomasse consciência de quem a acompanhava, sob o risco de perder o amado e retornar, de alguma forma, ao âmbito familiar. Contrariamente, Psique adotou uma postura de tomar as rédeas em busca da sua individuação. DINO (2024, p.5)
Desesperada, Psiquê busca reconciliar-se com Eros, mas é confrontada pela ira de Afrodite. A deusa a submete a quatro tarefas impossíveis: separar uma pilha de sementes misturadas, obter lã de ovelhas douradas, buscar água do rio Estige e trazer uma caixa contendo a beleza de Proserpina (Perséfone) do submundo. Com a ajuda de formigas, juncos falantes, uma águia e uma torre mágica, Psiquê consegue completar as tarefas. Contudo, ao sucumbir à curiosidade e abrir a caixa da beleza, ela é tomada por um sono mortal.Eros, ainda apaixonado, intervém. Ele a desperta e intercede junto a Júpiter (Zeus), que concede a Psiquê a imortalidade. O casal é então unido em um casamento divino, e Afrodite finalmente aceita a união.
Desta forma, o mito narrado por Apuleio (2019), pode ser interpretado como uma metáfora para o processo de individuação, tanto de Eros quanto de Psique. No início da história, Psiquê é adorada pelos outros como uma personificação da perfeição, mas essa projeção coletiva, embora lisonjeira, a distancia de sua própria essência. Quando Psiquê projeta seus medos e fantasias em seu marido invisível, acreditando que ele pode ser um monstro, ela age sob a influência dessas imagens inconscientes, rompendo o equilíbrio inicial de sua relação.
A decisão de acender a lamparina e ver o rosto de Eros é um momento crucial de recuo de projeção: ao confrontar a verdade, Psiquê quebra a idealização e inicia uma jornada de autoconhecimento. Esse ato de enfrentar o desconhecido — o que pode ser visto como a sombra — revela a necessidade de integrar os aspectos inconscientes do self para alcançar a maturidade psíquica.
Ao longo de sua jornada, Psiquê é submetida a tarefas que simbolizam desafios internos, como distinguir elementos aparentemente indistinguíveis, confrontar seus medos e lidar com os impulsos de curiosidade e poder. Cada tarefa reflete um passo no processo de integração de diferentes aspectos de sua psique.
O auxílio de forças externas, como as formigas e a águia, pode ser entendido como sinais que o self envia para o processo de individuação de psique, que se mostram como símbolos que a guiarão em seu processo de busca pela sua alma.
Quando Psiquê supera as provas impostas por Afrodite e é finalmente concedida a imortalidade, ela alcança a união definitiva com Eros, simbolizando a integração da alma com o amor divino e a totalidade do self.
Essa união final entre Psiquê e Eros representa a coniunctio alquímica, o casamento sagrado entre forças opostas dentro da psique. Na tradição alquímica e na psicologia analítica, essa fusão simboliza a integração das dinâmicas masculinas e femininas, do logos e do eros, do consciente e do inconsciente. É um momento de totalidade, onde os opostos não se anulam, mas se complementam, dando origem a um novo estado de ser. Essa união marca a realização da individuação, na qual a psique se torna íntegra ao reconhecer e integrar suas polaridades, permitindo um fluxo mais harmônico da vida psíquica.
O complexo materno que aprisionava Eros pode ser interpretado como uma representação das influências primárias da mãe sobre o desenvolvimento domesmo. Afrodite, sua mãe, exerce um poder de controle e manipulação sobre ele, conduzindo suas ações com o desejo de manter sua supremacia e influência, especialmente em relação a Psiquê. Inicialmente, Eros se comporta de forma submissa ao comando da mãe, obedecendo à ordem de fazer Psiquê se apaixonar pelo homem mais desprezível. Essa obediência a uma autoridade materna tão forte reflete o aprisionamento de Eros dentro das expectativas e desejos maternos,
limitando sua capacidade de agir de acordo com seus próprios sentimentos e desejos.
Ao se apaixonar por Psiquê, Eros encontra a oportunidade de se libertar da influência materna. Esse movimento representa um ato heroico, no qual ele rompe com o domínio de Afrodite e dá um passo em direção à própria autonomia. Seguindo a lógica da jornada do herói de Campbell (1997, p.137), essa transição equivale a sair da “barriga da baleia”, um momento crucial de transformação. Ao distanciar-se da condição de filho submisso à mãe, Eros inicia seu próprio caminho, permitindo a construção de uma identidade independente.
A libertação do complexo materno, como aponta Gaeta (2019, p.5), é um processo essencial para o desenvolvimento da individualidade. Quando um indivíduo permanece preso a essa dinâmica, sua psique fica subordinada à influência materna, dificultando a construção de uma identidade autônoma. Romper com esse vínculo não significa rejeitar a mãe, mas integrar sua influência de forma equilibrada, sem que ela domine a psique. Esse processo exige um movimento heroico, no qual
o indivíduo atravessa desafios internos para se desvincular das amarras emocionais e simbólicas que o mantêm em uma posição infantil, abrindo caminho para uma existência mais plena e autêntica.
A desobediência de Eros em relação a Afrodite, ao se apaixonar por Psiquê, e sua busca por liberdade para viver esse amor de forma autêntica, sinalizam a superação das influências excessivas de sua mãe sobre sua vida. Esse processo de libertação, ao mesmo tempo em que reflete o amadurecimento emocional de Eros, também simboliza a necessidade de superar o complexo materno para que se possa estabelecer um relacionamento mais equilibrado com o outro e consigo mesmo, permitindo-lhe alcançar uma totalidade psíquica maior. Dino (2024, p. 6) aponta o entrelaçamento dos dois processos:
“Ao ser visto por Psique, Eros amedronta-se e retorna ao ambiente materno. A ferida acontece ao mesmo tempo que a moçapercebe que o seu amante é o deus do amor. O que antes era “cego”, como um apaixonamento entre dois seres, transforma-se em tomada de consciência de quem é o outro, o que mobiliza o aparecimento dos aspectos sombrios que são acumulados na
experiência de cada um. Eis que Psique nasce em Eros após tocar-lhe simbolicamente com o óleo quente — Eros mobiliza-se em dor e vulnerabilidade pela consciência de ser visto. Do apaixonamento, surge a possibilidade do amor. DINO (2024, p. 6)
Assim, Psiquê e Eros vivenciam jornadas de individuação, nas quais enfrentam e superam as projeções inconscientes, expectativas familiares e desafios internos. Psiquê, ao confrontar seus próprios medos e ao romper com as idealizações, realiza o processo de autodescoberta que a conduz à união com o amor divino. Por outro lado, Eros, ao se libertar das amarras do complexo materno, encontra a possibilidade de viver um amor autêntico e, ao se tornar vulnerável, também inicia sua própria individuação.
Desta forma, o mito revela a necessidade de enfrentar as sombras pessoais e familiares para alcançar a maturidade emocional e espiritual, tornando-se um símbolo da jornada em busca da individuação. São os caminhos do ego e que o ego toma, saindo de um estágio de dependência infantil e rumando caminhos mais maduros, se aventurando na jornada de si mesmo, no qual ele participa, todavia não é o senhor dela.
3. Individuação: O Caminho para a Totalidade Psíquica
Jung descreve a individuação como o processo em que o indivíduo deixa de ser conduzido pelo inconsciente, tornando-se si mesmo (JUNG, 2012, 9/1, p. 490).
Di Yorio (2015, p. 38) complementa que a individuação é o caminho que busca a realização dos potenciais no sentido mais pleno possível. Isto envolve a integração equilibrada entre os aspectos inconscientes da personalidade. Durante esse processo, que é contínuo, o indivíduo deve perpassar por caminhos não trilhados, o que exige dedicação, fidelidade e lealdade nos embates consigo mesmo (GARCIA, 2023, p. 79).
É um processo que consiste em uma jornada longa, que acontece através dos símbolos, impelindo para integração dos opostos mediante um trabalho ativo, difícil e, por vezes, desconfortável, que passa pela complexidade da psiqueindividual e chega ao contato com uma centelha divina, o Self (GARCIA, 2023, p.77). A individuação tem maior relação com salvação do que com bem-estar, pois essa jornada não está isenta do confronto consigo e com o mundo, mas proporciona o aparecimento de uma personalidade mais ampla e amadurecida.
Stein (2020, p. 18) ressalta que o processo de individuação, tarefa a ser realizada a vida inteira, procura aumentar a consciência. Ele apresenta dois movimentos principais que ocorrem simultaneamente com base na alquimia: a separatio e a coniunctio. O primeiro consiste na separação de elementos psíquicos, identificando e dissociando o que é influenciado por fatores externos e figuras internas da psique. Esse processo promove maior clareza e autopercepção, essencial para o desenvolvimento da consciência.
O segundo movimento envolve a atenção cuidadosa às manifestações do inconsciente coletivo, como imagens arquetípicas que surgem em sonhos, imaginação ativa ou eventos sincronísticos. Esse material deve ser integrado, permitindo uma síntese entre inconsciente e consciência. Ambos os movimentos são indispensáveis para que a individuação alcance seu pleno desenvolvimento (STEIN, 2020, p. 19).
Guggenbuhl-Craig (1980, p. 41) sugere que individuação e salvação são conceitos fortemente relacionados. Segundo ele, a meta da individuação é a salvação da alma. Ele aponta inúmeros caminhos para a individuação, não somente o psicológico e o intelectual. Estes caminhos estão abertos para as pessoas se individuarem através da arte ou da culinária, dentro do contexto de amor ou de tecnologia, negócios ou política.
A individuação também envolve a harmonização de polaridades internas, como os arquétipos de anima e animus, permitindo que a pessoa transcenda as dicotomias internas. De acordo com Germano e do Amaral Vaz (2019, p. 11) a anima e o animus são estruturas arquetípicas presentes em homens e mulheres, cuja interação, como pares de opostos, promove o surgimento de algo novo e favorece o processo de desenvolvimento psicológico na relação conjugal. Esse dinamismo constitui uma base fundamental para as relações amorosas, desempenhando um papel significativo na sua manutenção e exigindo atenção especial no contexto da conjugalidade.
Em suma, o processo de individuação, conforme descrito por Jung e complementado por outros autores, é um caminho contínuo e desafiador que envolve a integração dos aspectos inconscientes à consciência. É um processocontínuo de desenvolvimento, um vir a ser que nunca se encerra completamente.
Sempre existirão aspectos da psique que emergem e clamam por integração, exigindo novos olhares e transformações. Não é um estado final, mas um movimento permanente em direção à totalidade.
4. O Papel da Sombra e das Projeções no Relacionamento Conjugal
Na perspectiva junguiana, a sombra é o conjunto de aspectos da personalidade que são reprimidos, não reconhecidos pela consciência, aspectos obscuros da personalidade (JUNG, 2012, 9/2, p. 14). Esses aspectos podem incluir traços de caráter, impulsos, desejos ou emoções que são considerados indesejáveis ou incompatíveis com a imagem idealizada que o ego tem de si
mesmo. A sombra não é apenas uma coleção de qualidades negativas, mas também uma fonte de potenciais não desenvolvidos e qualidades valiosas que, quando integradas, podem contribuir para o crescimento pessoal.
Pieri (1998, p. 474) complementa que a sombra contém qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existência humana.
Ele ainda destaca o conjunto das funções indiferenciadas ou fracamente diferenciadas em relação às funções psíquicas já diferenciadas. Dessa forma, a sombra abriga não apenas aspectos reprimidos, mas também potenciais não desenvolvidos que, quando reconhecidos e integrados, contribuem para a totalidade da psique.
Jung (2012, 9/2, p. 16) destaca que a integração da sombra na personalidade pode ser facilitada por meio de compreensão e boa vontade. No entanto, alguns aspectos da sombra opõem resistência obstinada ao controle moral e escapam da influência consciente. Esses aspectos geralmente se manifestam em forma de projeções, que são atributos ou emoções que o indivíduo atribui a outras pessoas, sem reconhecer que eles têm origem dentro de si mesmo. Esse fenômeno de projeção ocorre frequentemente porque o indivíduo não está preparado para lidar com as partes obscuras de sua psique e, assim, desvia a responsabilidade para os outros. Por essa razão, o processo de integração da sombra exige um esforço moral profundo e uma disposição para encarar essas partes desconhecidas da personalidade.
Em muitos casos, os traços da sombra podem ser identificados como aspectos pertencentes à própria personalidade, mas a dificuldade de reconhecê-losé grande, pois a emoção associada à projeção faz com que o indivíduo sinta que a causa dessa emoção vem de outra pessoa ou situação. Mesmo que o observador externo perceba claramente que se trata de uma projeção, o sujeito muitas vezes não consegue fazer essa conexão, o que dificulta a tomada de consciência necessária para o processo de autoconhecimento. O desafio está em superar a resistência interna de ver o que está oculto, ou seja, reconhecer que as emoções e
reações que se projetam sobre os outros fazem parte de sua própria sombra (JUNG, 2012, 9/2, p. 16).
É importante entender que o reconhecimento de uma projeção emocional nem sempre é simples. Em alguns casos, há um engano, no qual o indivíduo tenta separar a projeção da emoção, tratando o objeto projetado como algo independente e distinto de si. Essa confusão pode dificultar a identificação dos aspectos da sombra e retardar o processo de individuação. Jung aponta que, enquanto a integração da sombra é um passo crucial para o autoconhecimento, ela também envolve um processo doloroso e desafiador, que requer uma profunda reflexão sobre as próprias atitudes, valores e sentimentos. O trabalho com a sombra é, portanto, um caminho que exige coragem, paciência e um comprometimento moral significativo (JUNG, 2012, 9/2, p. 16).
Não integrar a sombra e, consequentemente, não tomar consciência das projeções pode ser perigoso, pois permite que os conteúdos do inconsciente ajam de maneira livre e descontrolada, conduzindo o indivíduo a uma relação distorcida com o mundo. Quando as projeções não são reconhecidas, o sujeito começa a viver em uma realidade ilusória, onde suas próprias concepções e sentimentos internos são atribuídos aos outros, criando uma desconexão progressiva da realidade objetiva (JUNG, 2012, 9/2, p. 17). Jung aponta aspectos da projeção: Muitas vezes é trágico ver como uma pessoa estraga de modo evidente a própria vida e a dos outros, e como é incapaz de perceber até que ponto essa tragédia parte dela e é alimentada progressivamente por ela mesma. Não é a sua consciência que o faz, pois esta lamenta e amaldiçoa o mundo desleal que dela se afasta cada vez mais. Pelo contrário, é um fator inconsciente que trama as ilusões que encobrem o mundo e o próprio sujeito. Na realidade, o objetivo desta trama é um casulo em que o indivíduo acabará por se envolver (JUNG, 2012, 9/2, p. 18).Nas dinâmicas conjugais, as projeções desempenham um papel significativo, manifestando-se como atribuições de características, emoções ou expectativas
inconscientes em relação ao outro. Esses conteúdos projetados, frequentemente derivados da sombra, incluem aspectos reprimidos da psique, como medos, desejos, traços indesejados ou potenciais não desenvolvidos, que o indivíduo não reconhece em si mesmo. Assim, é comum que um cônjuge atribua ao outro qualidades que, na verdade, refletem suas próprias dificuldades ou potencialidades.
Portanto a projeção tem sua importância para a vida do animus e anima e, até certo ponto, ela é normal e saudável, pois a ausência de projeção retém toda a energia psíquica no sujeito (SAMUELS, 1989).
Zweig & Abrams (1994, p. 152) relata que de modo geral, as projeções tendem a ser intercâmbios, um comércio de partes reprimidas do eu, que os dois membros do casal concordam em fazer. E, então, cada um deles vê no outro as coisas que não consegue perceber em si mesmo e luta, incessantemente, para mudá-las.
Quando essas projeções não são reconhecidas, podem gerar expectativas irreais e frustrações no relacionamento. O parceiro pode ser idealizado ou culpabilizado por aspectos que, na verdade, pertencem ao próprio indivíduo, dificultando a construção de uma relação autêntica. Se a sombra na relação não for reconhecida, ela poderá gerar conflitos constantes, frustrações e uma desconexão emocional entre os parceiros. As projeções inconscientes fazem com que cada um atribua ao outro características negativas que, na verdade, pertencem a si mesmo, resultando em críticas, ressentimentos e mal-entendidos. Além disso, padrões
destrutivos podem se repetir, como dependência emocional, controle excessivo ou afastamento afetivo, tornando a relação desgastante e, muitas vezes, insustentável.
A falta de reconhecimento da sombra também impede o crescimento pessoal e conjugal, pois os parceiros permanecem presos a comportamentos automáticos e reações impulsivas. Sem essa consciência, a relação pode se tornar um campo de batalhas onde cada um tenta mudar ou corrigir o outro, sem perceber que a verdadeira transformação precisa ocorrer internamente. Em longo prazo, essa dinâmica pode levar ao distanciamento emocional, desinteresse ou até à ruptura do vínculo, já que os problemas projetados no cônjuge nunca são verdadeiramente resolvidos.
Portanto o relacionamento se transforma em um espaço de crescimentomútuo, onde a integração da sombra poderá fortalecer a conexão e promover uma união mais verdadeira e profunda. Entretanto, quando reconhecidas como manifestações internas, as projeções podem servir como uma via para o autoconhecimento e para a integração dos aspectos sombrios da personalidade. Tal processo favorece a criação de uma relação conjugal mais equilibrada, na qual ambos os parceiros são vistos em sua totalidade, permitindo o desenvolvimento de um vínculo mais saudável e autêntico.
O prognóstico de qualquer relacionamento está intimamente ligado ao dilema da sombra, pois a forma como se lida com os próprios aspectos inconscientes influencia diretamente nas relações. Se uma pessoa não consegue aceitar e integrar suas próprias contradições, inseguranças e traumas, inevitavelmente projetará essas dificuldades sobre o outro, esperando dele uma aceitação que nem ela mesma consegue oferecer. Assim, a qualidade de um relacionamento depende, em grande parte, da disposição de cada indivíduo para enfrentar sua própria sombra, pois só ao reconhecer e aceitar quem realmente somos podemos oferecer
ao outro uma conexão mais autêntica e madura. Hollis destaca a importância do relacionamento interior, como base para outras relações:
De uma forma ou de outra, sem vida interior, isto é, sem relacionamento com uma realidade pessoal e consistente, sem senso de direção dentro de si mesmo, ativaremos dinâmicas cada vez mais obstrutivas que são transferidas aos nossos parceiros, aqueles que declaramos amar. É muito mais fácil culpar o outro, ou encontrar um “outro” melhor. (HOLLIS, 2010, p.111)
Desta forma, para que um relacionamento seja saudável e duradouro, ambos os cônjuges precisam desenvolver uma vida interior sólida, assumindo a responsabilidade por suas próprias sombras e desafios emocionais e apoiando a busca do outro. Em vez de esperar que o parceiro supra carências ou resolva conflitos internos, cada um deve buscar sua própria completude, fortalecendo o vínculo conjugal com autenticidade e maturidade.
No mito de Psiquê e Eros, a sombra se manifesta tanto na psique individual quanto na dinâmica do relacionamento. A sombra de Psiquê representa sua insegurança, dúvida e medo do desconhecido, que a levam a desobedecer a única regra imposta por Eros e espiar seu rosto. Esse ato impulsivo reflete aspectosreprimidos de sua psique, como a necessidade de controle e a desconfiança, que sabotam sua relação. Já a sombra de Eros surge em sua fragilidade diante do amor e na dificuldade de lidar com a transparência e o compromisso. Ele foge quando é descoberto, mostrando que também carrega contradições internas e resistências ao vínculo consciente.
Assim, o mito ilustra como a sombra influencia o desenvolvimento psicológico e os relacionamentos, evidenciando que apenas ao enfrentar esses aspectos ocultos Psiquê pode amadurecer e alcançar a verdadeira união com Eros.5. Complexos Parentais: Heranças Psíquicas e Impactos no Casamento Os complexos materno e paterno desempenham um papel crucial na constituição da psique, influenciando profundamente a formação da identidade e das relações interpessoais. Segundo Jung, esses complexos são estruturas psíquicas que contêm as experiências e as emoções associadas às figuras parentais e moldam a maneira como o indivíduo percebe a si mesmo e ao mundo ao seu redor (JUNG, 2012, OC 9/2, p. 29).
Essas experiências deixam impressões psicológicas profundas, que moldam a forma como o indivíduo percebe e interage com o mundo. Em um casamento, essas impressões podem ser projetadas no parceiro, que é inconscientemente colocado no lugar da figura parental, reproduzindo padrões de comportamento, expectativas e até conflitos vividos na relação com a família de origem.
Di Yorio (2015, p. 83) destaca que em inúmeros relacionamentos amorosos, as feridas da infância são reeditadas em função de ciladas inconscientes que necessitam de conscientização e elaboração de ambas as partes. Quando esses complexos não são devidamente integrados, podem se manifestar em projeções e expectativas irracionais, afetando negativamente a relação. Se a relação se estrutura com base nos complexos infantis, o potencial para crescimento e desenvolvimento fica travado, por consequência de uma dinâmica inconsciente pela qual um ou ambos os cônjuges se identificam com a criança e projetam a imagem parental (DI YORIO, 2015, p. 45).
O processo de individuação requer de cada pessoa diferenciar-se dos seus pais, ou seja, separar-se dos seus complexos parentais,
para conseguir fazer a passagem de filho (a) para adulto (a) e também assumir a relação conjugal baseada no respeito mútuo, que
oferece espaço para desenvolver o potencial de cada cônjuge (DI YORIO, 2015, 0. 45).
Quando os complexos permanecem inconscientes, eles podem exercer um domínio tirânico sobre a vida do indivíduo, influenciando suas escolhas, reações emocionais e relações interpessoais de maneira automática e muitas vezes destrutiva. Os complexos atuam como forças autônomas dentro da psique, ativando respostas emocionais desproporcionais e conduzindo o indivíduo a padrõesrepetitivos de comportamento. Dessa forma, ao invés de agir de maneira consciente e deliberada, a pessoa é tomada por reações impulsivas que refletem experiências passadas, especialmente aquelas relacionadas às figuras parentais.
No contexto conjugal, a tirania dos complexos inconscientes pode gerar crises e dificuldades na relação, pois um ou ambos os parceiros tendem a reviver conflitos infantis sem perceber. Isso se manifesta, por exemplo, quando um cônjuge exige do outro aquilo que não recebeu na infância, como atenção, validação ou proteção, tornando a relação uma tentativa inconsciente de sanar antigas feridas.
Além disso, há o risco de idealizar ou demonizar o parceiro com base em memórias projetadas dos pais, o que impede a construção de uma relação baseada na realidade e na aceitação do outro como ele realmente é.
A influência dos complexos inconscientes também pode levar a padrões de autossabotagem e ciclos destrutivos dentro do casamento. Quando não há um trabalho consciente de integração, o indivíduo pode se ver preso em comportamentos impulsionados por emoções não elaboradas, como ciúmes excessivo, medo do abandono ou necessidade de controle. Esses padrões impedem a relação de se desenvolver de maneira saudável e equilibrada, pois perpetuam dinâmicas infantis que dificultam o crescimento emocional de ambos os parceiros.
Portanto, isso implica na necessidade de uma conscientização profunda sobre as projeções que se carregam dos pais, reconhecendo como essas influências podem moldar as expectativas e os comportamentos no casamento.
Somente ao integrar e transcender esses complexos, o casal é capaz de construir uma relação saudável e equilibrada, onde cada parceiro se apoia no crescimento do outro, sem a imposição das dinâmicas passadas. Stein (2020, p.141) reforça que os complexos retardam o processo de individuação, pois forçam a pessoa a lidar com impasses emocionais. Será necessária a ruptura da identidade com imagens narrativas da infância.
Kast (1997, p.10) complementa que o complexo do eu de uma pessoa precisa se desligar, de maneira adequada à sua idade, dos complexos materno e paterno, para que ela possa reconhecer suas tarefas de desenvolvimento e ter um eu coerente. Efetuar essa separação equivale a libertar-se dos complexos (STEIN, 2020, p. 141). Isso permite lidar com as exigências da vida, enfrentar dificuldades e alcançar prazer e satisfação.
Os complexos parentais de Eros e Psiquê também desempenham um papelcentral na dinâmica do mito, influenciando seus comportamentos e desafios na relação. No início do mito, Psique é apresentada como uma jovem idealizada e passiva, cuja vida é definida pelas decisões de seu pai, o rei, que segue as orientações do oráculo sem que ela tenha autonomia sobre seu próprio destino. Sua adoração pelo povo, sem ser realmente amada como mulher, pode indicar um complexo paterno ligado à idealização do masculino, dificultando sua capacidade de estabelecer relações autênticas. Entretanto, ao enfrentar as provas impostas por
Afrodite, Psique inicia um processo de individuação, rompendo com a influência paterna e construindo sua própria identidade. Suas tarefas simbolizam a necessidade de superar a dependência e desenvolver força interior, culminando em sua imortalização, que representa a superação do complexo paterno e a conquista da maturidade psíquica.
Já Eros, como filho de Afrodite, apresenta um vínculo simbiótico com a mãe, demonstrando dificuldade em se desvincular de sua influência e estabelecer uma relação madura com Psiquê. Seu afastamento após a quebra de confiança reflete a dificuldade em lidar com a independência e o medo de romper com padrões parentais internalizados. Assim, o mito ilustra como os complexos parentais impactam os relacionamentos, exigindo que os indivíduos reconheçam e elaborem essas influências inconscientes para construir vínculos mais autênticos e equilibrados.
6. Anima e Animus: A União das Polaridades Psíquicas
A definição mais simples e mais antiga que Jung apresentou é a de que a anima personifica o elemento feminino no homem, e o animus personifica o elemento masculino na mulher (SANFORD, 1987, p. 20). Essas figuras arquetípicas têm sua origem na interação do indivíduo com suas primeiras experiências e figuras significativas, como pais e outros modelos de masculinidade e feminilidade, sendo as figuras arquetípicas parentais, fundamentais na formação dos arquétipos da anima e do animus. Além do mais, tais arquétipos sofrem profundas influências sócio históricas, que definem o masculino e o feminino, muitas vezes de forma dicotômica (GOMES, 2021, p. 42).
Emma Jung (2006) destaca a dualidade dos arquétipos de animus e anima, que, embora enraizados no inconsciente coletivo, também influenciam a psique individual. Esses arquétipos são fundamentais na formação da personalidade, poismoldam as relações de cada pessoa com o sexo oposto, mas, ao mesmo tempo, representam imagens universais presentes em todas as culturas. Como uma ponte entre o pessoal e o impessoal, e entre o consciente e o inconsciente, animus e anima facilitam a integração dessas dimensões, permitindo ao indivíduo acessar e confrontar aspectos profundos de sua psique.
O caráter dos arquétipos dessas figuras se compõe pelas experiências que cada um traz em si no contato com o indivíduo do
sexo oposto no decorrer da vida, bem como pela imagem coletiva que o homem tem da mulher e a mulher tem do homem. São mais que conceitos estáticos, pois configuram a essência que dirige as funções anímicas, por isso, intervêm na vida individual, como um estranho, ora prestativo, ora destrutivo. Por isso, a importância de compreender a atuação desses arquétipos, já que “os fatores inconscientes são realidades determinantes, do mesmo modo que os fatores que regem a vida da sociedade” (JUNG, 2008 7/2, p. 311).
De acordo com Gonçalves e Lopes (2018) o princípio feminino (anima) relaciona-se ao eros materno que é a função da conexão, emoção, integração, sentimento e relação, enquanto que o princípio masculino (animus) corresponde ao logos paterno que está associado à cognição, ao discernimento, ao intelecto, à razão, estando presente na mulher tanto o eros quanto o logos, embora muitas vezes dissociados dentro de cada indivíduo. São os arquétipos mobilizadores que impulsionam a busca pelo parceiro, atuando como pontes para o inconsciente e permitindo o desenvolvimento da personalidade (GARCIA, 2023, p. 77).
Garcia (2023) aponta que a relação do indivíduo com esses dois arquétipos é fundamental para o desenvolvimento, pois permite um relacionamento amadurecido consigo e com o mundo externo. Onde a anima é vívida, o animus penetra.
Enquanto a anima dança com os antepassados, o animus constroi pontes para o futuro. O desenvolvimento do animus é o desenvolvimento do próprio ego, já que estamos numa sociedade patriarcal que valoriza os princípios masculinos, enquanto
os princípios femininos são considerados inferiores e irracionais. Integrar a anima não é viver num estado de perfeição absoluta, mas, sim, mudar a percepção sobre a própria vida e transcender a própria existência, vivendo em comunhão com a fonte de vida inconsciente.
Sanford (1987) enriquece a discussão ao se referir a anima e animus comoos “parceiros invisíveis” (polaridade interna) da relação homem-mulher, influenciando fortemente essa relação, pois sempre que a pessoa recebe a projeção tem sua identidade anulada, sendo substituída pela imagem projetada e, com isso, a realidade humana do parceiro fica distorcida. Este autor ainda explica que as projeções não são ruins nem boas, o que importa é o que será feito com elas.
O desenvolvimento de uma personalidade independente requer a integração equilibrada das energias masculina e feminina, que são opostas, mas complementares, dentro do indivíduo, ou seja, a busca pela totalidade. Isso implica na harmonização de aspectos contraditórios da psique, permitindo que o indivíduo acesse e integre tanto as qualidades atribuídas ao masculino, como a racionalidade e a ação, quanto às qualidades do feminino, como a receptividade e a intuição.
Em casamento homoafetivo, os conceitos de anima e animus também desempenham um papel fundamental na compreensão dos aspectos inconscientes da psique que complementam a identidade consciente do indivíduo.
Tradicionalmente, a anima foi associada ao aspecto feminino presente no homem, enquanto o animus foi vinculado ao aspecto masculino na mulher. No entanto, essas noções têm sido revisadas para evitar interpretações heteronormativas e binárias, que reduzem sua aplicação à complementaridade entre sexos opostos. Em vez de representarem traços fixos da identidade sexual ou de gênero, anima e animus devem ser entendidos como símbolos de dimensões desconhecidas da psique, carregadas de potencialidade e transformação, independentemente da orientação sexual do indivíduo.
A projeção do inconsciente não está necessariamente atrelada ao sexo oposto, mas sim à alteridade, ou seja, àquilo que o sujeito percebe como diferente e desafiador em sua própria psique. Em relações heteroafetivas, essa projeção frequentemente se manifesta no parceiro do sexo oposto, mas em relações homoafetivas, ela pode emergir de outras formas, como no contraste entre traços psicológicos, emocionais ou até arquétipos culturais. Assim, a dinâmica dos opostos dentro da psique não depende de uma interpretação biológica da sexualidade, mas sim da interação simbólica entre forças inconscientes e conscientes. Dessa
maneira, a sexualidade opera como metáfora para a busca de equilíbrio psíquico, permitindo que o indivíduo se relacione consigo mesmo e com o outro de forma mais profunda e integrada.
Samuels (1985, p. 252) salienta a importância de observarmos a psicologia do oposto e afirma que devemos pensar na sexualidade como metáfora:Anima e animus provocam imagens que representam um aspecto inato de homens e mulheres – aquele aspecto deles que é, de certa forma, diferente do modo como funcionam conscientemente; um outro, estranho, talvez misterioso, porém certamente cheio de possibilidades e potencialidades. Mas por que a ênfase no “sexo oposto”? Porque o homem irá, muito mais naturalmente, imaginar o que é seu “outro”, para ele, sob a forma simbólica de uma mulher – um ser com outra anatomia. A mulher irá simbolizar o que é estranho, ou misterioso para ela, em termos do tipo de corpo que ela mesma não tem. Na verdade, a sexualidade do oposto implica na psicologia do oposto; a sexualidade é uma metáfora para isso.
No mito de Eros e Psiquê, as figuras de anima e animus são representadas pela jornada de autodescoberta e transformação de ambos os personagens. Psiquê, inicialmente ingênua e submissa, projeta seu animus em Eros, vendo nele uma figura idealizada, misteriosa e poderosa. Contudo, ao longo de suas provações, ela desenvolve atributos tradicionalmente associados ao masculino, como coragem, determinação e autonomia, integrando seu animus e fortalecendo sua individualidade.
Por outro lado, Eros, inicialmente dominado por instintos e pela influência materna de Afrodite, é confrontado com a necessidade de amadurecimento emocional ao vivenciar a dor da separação e a espera pela amada. Esse percurso reflete o despertar de sua anima, permitindo-lhe acessar uma dimensão mais profunda de amor e entrega.
7. Conflitos Conjugais como indicadores de aspectos internos e Catalisadores de Crescimento Psíquico
Os conflitos conjugais, frequentemente vistos como obstáculos, podem ser compreendidos como manifestações dos aspectos inconscientes da psique de cada parceiro. A projeção da sombra, os complexos parentais e a influência dos arquétipos da anima e do animus são elementos fundamentais que estruturam a dinâmica conjugal. Quando não reconhecidos, esses fatores inconscientes podem transformar a relação em um campo de batalha onde cada parceiro se torna depositário das questões não resolvidas do outro. No entanto, ao seremcompreendidos e integrados, tornam-se oportunidades para o crescimento psíquico e o desenvolvimento da individualidade dentro da relação.
O conflito entre Eros e Psique reflete a tensão entre o amor inconsciente e a necessidade de amadurecimento para que a relação possa evoluir. Eros, como deus do desejo, vive inicialmente em uma dinâmica de ocultação, mantendo Psiquê no mistério e evitando ser visto, o que indica sua própria imaturidade e resistência à luz da consciência. Por outro lado, Psique, movida pela dúvida e pela influência externa, rompe a confiança ao tentar enxergar Eros antes de estar preparada, simbolizando sua necessidade de integrar o desconhecido de forma mais consciente.
A separação entre os dois não é apenas um desafio para Psique, mas também para Eros, que precisa abandonar sua postura infantil e enfrentar a dor da perda para compreender que o verdadeiro amor não pode existir sem clareza e reciprocidade. Assim, enquanto Psiquê realiza suas provas para fortalecer sua autonomia e individuação, Eros também passa por uma transformação, reconhecendo que o amor não pode permanecer oculto e precisa integrar tanto o desejo quanto a consciência. O reencontro final só acontece quando ambos completam esse processo, permitindo uma união mais equilibrada e madura.
A relação amorosa exige coragem para enfrentar verdades ocultas e aprofundar a compreensão sobre si mesmo e o outro. Os desafios do relacionamento, ao invés de serem encarados como sinais de fracasso, podem ser vistos como chamados para uma maior integração psíquica, exigindo que cada parceiro assuma a responsabilidade por suas projeções e pelos aspectos de sua
sombra que emergem no vínculo amoroso.
Os conflitos conjugais, nesse sentido, tornam-se espelhos que revelam não apenas dificuldades relacionais, mas também aspectos internos que necessitam de atenção e elaboração. A sombra projetada no cônjuge pode ser um convite para reconhecer e integrar traços rejeitados da própria personalidade, permitindo que a relação não seja apenas um espaço de frustrações, mas um caminho para a totalidade psíquica. De forma semelhante, a dinâmica dos complexos parentais, quando trabalhada conscientemente, possibilita que o casamento se desvincule das repetições infantis e passe a se estruturar a partir de escolhas autênticas e maduras.
Muitos casamentos murcham, secam e perdem o caminho da individuação porque os casais tentam resolver suas dificuldades através da repressão e exclusão de suas características mais importantes e essenciais, sejam elas desejos sexuais estranhos, traços neuróticos, ou que quer que seja. Quanto mais confronto se faz,mais interessante e fecundo se torna o caminho para a individuação. (Guggenbuhl-Craig, 1980, p. 114).
O processo de individuação exige o enfrentamento do sofrimento, pois ele é um catalisador para o crescimento psicológico. Encarar os aspectos sombrios e conflitantes da psique, conhecidos como sombra, é inevitável e, muitas vezes, doloroso, pois implica romper com ilusões, confrontar traumas e questionar crenças arraigadas. Esse sofrimento, porém, não é meramente destrutivo; ele desempenha um papel transformador, permitindo que o indivíduo amplie sua consciência e integre partes negligenciadas ou reprimidas de si mesmo. Sem essa disposição para lidar com a dor psíquica, o potencial pleno da individuação não pode ser alcançado, já que a verdadeira integração só ocorre por meio do confronto honesto com os próprios limites e conflitos internos. Guggenbuhl-Craig (1980) complementa que não pode existir individuação sem o confronto com o lado destrutivo da alma.
O casamento proporciona o espaço para que a individuação aconteça, permitindo o amadurecimento da capacidade de amar e se relacionar. Se o relacionamento for valorizado apenas nos momentos que oferece bem-estar, felicidade, satisfação dos desejos, paz e plenitude, não haverá capacidade suficiente para suportar as adversidades (SANFORD, 1987). Um casamento só funciona se alguém se abre exatamente para aquilo que nunca pediria que fosse de outra maneira. Somente friccionado as próprias feridas e se perdendo se é capaz de aprender sobre si mesmo, Deus e o mundo. Como todo meio de salvação, o casamento é duro e doloroso (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1977, p. 56).
Por fim, a relação conjugal não deve ser compreendida como um espaço de satisfação completa das necessidades psíquicas, mas como um caminho de transformação que exige de cada um o desenvolvimento da própria individualidade.
A integração da anima e do animus permite que cada parceiro encontre, dentro de si, os princípios que antes buscava no outro, alcançando uma relação menos baseada em dependências projetivas e mais sustentada por uma conexão autêntica.
Assim, os desafios conjugais, quando compreendidos como sinais de um processo psíquico profundo, tornam-se catalisadores do crescimento pessoal e da construção de um vínculo mais maduro e significativo.
Portanto, ao invés de serem tratados como obstáculos a serem evitados, os conflitos podem ser considerados oportunidades para o crescimento, promovendo uma relação mais profunda e autêntica, além de contribuir para a totalidade do self.
A disposição para enfrentar os momentos de sofrimento e confronto é essencialpara que o casamento se torne um veículo de transformação e autoconhecimento, permitindo que ambos os parceiros avancem em sua jornada de individuação.
8. Metodologia
A revisão integrativa foi realizada a partir da busca integrada dos descritores casamento e individuação nas bases Scielo, Google Acadêmico entre os registros de 2014 a 2024, realizada em novembro de 2024, além da busca em livros com temáticas relacionadas.
9. Análise e Discussão dos Resultados
A análise dos resultados revelou que o casamento pode atuar como um catalisador significativo no processo de individuação, especialmente quando os parceiros estão dispostos a enfrentar suas próprias sombras e projeções. Ao longo da pesquisa, foi possível identificar que, muitas vezes, os conflitos conjugais são impulsionados por projeções inconscientes, em que os indivíduos atribuem características de suas próprias psique (como aspectos da sombra ou arquétipos de Anima/Animus) ao parceiro. Esses mecanismos de projeção tendem a distorcer a percepção do outro, criando um ciclo de desentendimentos e afastamento. No entanto, quando reconhecidos e trabalhados conscientemente, esses conflitos se tornam oportunidades para o crescimento pessoal, pois forçam os indivíduos a confrontarem aspectos não integrados de sua psique.
Além disso, o estudo mostrou que a compreensão dos complexos parentais e das dinâmicas familiares de cada parceiro é fundamental para a resolução desses conflitos e para resolução de dramas passados. Quando um ou ambos os parceiros estão cientes de como suas experiências de infância e os complexos parentais influenciam suas expectativas e comportamentos, há uma maior chance de transformação. Nesse sentido, o casamento não é apenas um espaço de convivência, mas um reflexo das questões internas de cada um, que, se trabalhadas com autoconhecimento, podem levar à integração das polaridades internas, como o masculino e o feminino, e à realização de um relacionamento mais autêntico e equilibrado.
No mito de Eros e Psique, essa dinâmica é clara: Psique projeta suas inseguranças e dúvidas em Eros, resultando na quebra de confiança e separação.Da mesma forma, os conflitos conjugais, muitas vezes, são impulsionados por projeções inconscientes, nas quais os indivíduos atribuem características de suas próprias psique ao parceiro, distorcendo a percepção do outro e criando um ciclo de desentendimentos.
Contudo, quando esses conflitos são reconhecidos e trabalhados conscientemente, como aconteceu com Psique ao enfrentar suas
provas, eles se tornam oportunidades de crescimento pessoal, pois forçam os indivíduos a confrontarem aspectos não integrados de sua psique. A jornada de Psiquê de amadurecimento, ao lado de Eros, ilustra como, ao integrar suas sombras, ambos conseguem alcançar um amor mais equilibrado e maduro.
Assim, como no mito, quando os parceiros estão conscientes dos complexos parentais e das dinâmicas familiares que moldam suas expectativas e comportamentos, há maior possibilidade de transformação e de criação de um relacionamento autêntico, refletindo a integração das polaridades internas, como o masculino e o feminino.
10. Considerações Finais
O casamento pode, de fato, ser um palco para promover a individuação, pois oferece um espaço constante de interação, onde os parceiros são desafiados a confrontar suas sombras e aspectos inconscientes. A convivência íntima tende a trazer à tona projeções e complexos, como os arquétipos da Anima/Animus, forçando os indivíduos a reconhecerem e integrarem partes de sua psique que, de outra forma, poderiam permanecer ocultas. Assim, ao enfrentarem esses desafios juntos, os cônjuges têm a oportunidade de crescer e evoluir, não apenas como parceiros, mas também como indivíduos, alcançando um equilíbrio maior entre suas
polaridades internas, como o masculino e o feminino. Esse processo de autoconhecimento e transformação pode levar a um relacionamento mais autêntico e consciente, promovendo a individuação tanto no nível pessoal quanto conjugal.
Ao longo deste estudo, ficou evidente que a projeção da sombra e dos complexos pode ocasionar conflitos e comprometer significativamente a qualidade dos relacionamentos conjugais. A falta de reconhecimento de si, leva os indivíduos a atribuírem ao parceiro aspectos reprimidos de sua própria psique, gerando conflitos, frustrações e dinâmicas repetitivas que enfraquecem a relação. Assim, para que um vínculo conjugal seja saudável e autêntico, é essencial que ambos os parceiros se dediquem ao trabalho de integração da sombra, reconhecendo seus próprioscomplexos e assumindo a responsabilidade por suas emoções e comportamentos.
O mito de Eros e Psiquê ilustra, de maneira simbólica, os desafios e as transformações necessárias para o processo de individuação. A jornada de Psiquê representa o caminho da alma em busca da integração de seus aspectos inconscientes, enquanto Eros simboliza a necessidade de romper com influências maternas para alcançar a autonomia emocional. O desenrolar do mito evidencia que o amor verdadeiro só pode emergir quando ambos os indivíduos confrontam suas sombras e projeções, permitindo uma relação mais autêntica e equilibrada.
Além disso, conforme destacado por Hollis (2010, p. 111), a ausência de uma vida interior consistente leva à transferência de aspectos para o outro, criando expectativas irreais e impedindo o verdadeiro crescimento do relacionamento. Dessa forma, é fundamental que cada indivíduo cultive um senso de direção interna, desenvolvendo um relacionamento profundo consigo mesmo para que possa se relacionar com o outro de maneira consciente.
Portanto, a construção de um relacionamento maduro não depende apenas do amor ou da afinidade entre os parceiros, mas da disposição de cada um para enfrentar suas próprias sombras e desafios emocionais. A partir desse trabalho contínuo de integração psíquica, a relação conjugal pode se transformar em um espaço de crescimento mútuo, onde ambos se reconhecem na totalidade de suas essências, promovendo uma conexão mais profunda e verdadeira.