
20 mar JUNG: CONSELHOS PARA O FUTURO
por Alexandre Vieira
Resumo
Neste artigo o autor busca integrar a visão de Jung e Edinger sobre os conceitos de arquétipo e apocalipse para refletir sobre a nova onda catastrofista com contornos disruptivos que tomou conta do ocidente neste primeiro quartel do novo milênio e que tem resultado em adoecimento psíquico massivo. A proposta é que seja estabelecida uma escuta e um diálogo contemplativo com estes autores, sobretudo Jung, de modo que possamos lidar melhor com o nosso próprio processo de reorganização da prática clínica e da ação lúcida e engajada num mundo afundado em retóricas desesperançosas e delirantes. Tal tarefa exige uma capacidade ampliada de escuta das dinâmicas do nosso próprio inconsciente e de suas formas projetivas que vai além do que conseguimos fazer a partir dos estágios de desenvolvimento e integração do budismo no ocidente. Partiremos do pressuposto de que embora os ensinamentos budistas existam para nos auxiliar a compreender o que consideramos ser doloroso e indesejável, ele ainda não o faz exatamente de modo a contrastar e fazer frente às demandas pela busca de felicidade ou liberdade típicas de indivíduos que vivem em sociedades materialistas e liberais como as nossas, sobretudo quando tais sociedades vibram em pessimismo e desesperança delirante. Aqui entra Jung e seus aconselhamentos. Seus insights reveladores sobre o caos psíquico coletivo e os arquétipos da desordem são particularmente atuais, o que torna indispensável acessar sua filosofia e pensamento crítico.
Introdução
No artigo Presente e Futuro de 1957 Jung (OC 10/1, §488) faz a seguinte pergunta: “[…] o que nos reserva o futuro?” E responde que em tempos particularmente intensos na política, na economia, na materialidade e na espiritualidade é que os seres humanos se voltam angustiosos para o porvir “[…] e se multiplicam então as antecipações, utopias e visões apocalípticas”. Jung parecia se dar conta de que a tragédia da ascensão de formas imperiais de poder no ocidente na primeira metade do século vinte não apenas não havia desaparecido com a derrota e total rendição dos alemães e os países do eixo ao fim da segunda guerra mundial (1939-1945), como seguiam ativos como minorias subversivas prontas para entrar em ação.
O que teria dito Jung se tivesse a possibilidade de retornar para testemunhar os acontecimentos das duas primeiras décadas do novo milênio? Possível que ficasse espantado, perplexo e quase certo que falaria da sombra desembestada de um Wotan (Odin, um deus nórdico da vida e da morte) ou de uma forma deificada arquetípica de manifestação do inconsciente coletivo que estaria se reapresentando, só que desta vez de modo muito mais massivo e planetário.
Em nosso tempo a crise climática acabou por se tornar um dos principais termos abrangentes para rotulações totalizantes como aquecimento global, colapso climático, degradação ambiental, efeito estufa e outros, que por sua vez, estão conectados a consequências não menos dramáticas como ondas de calor, secas prolongadas, tempestades intensas, inundações, enchentes, degelo polar, elevação do nível do mar, acidificação dos oceanos, desertificação florestal, colapso de ecossistemas, esterilização do solo e diminuição das reservas mundiais de água potável, só para citar alguns.
Os impactos para a vida na terra são anunciados como: extinção de espécies da fauna e da flora, aumento no fluxo de refugiados climáticos, expansão das guerras e conflitos armados por recursos naturais, aumento da concentração de renda e desigualdade social, crises econômicas baseadas em falta de insumos, aumentos de doenças respiratórias, epidemias e pandemias, ecoansiedade, desesperança, depressão massiva, solastalgia, pânico, exaustão, adoecimento psíquico de todas as ordens.
Estados e organismos multilaterais procuram reforçar a importância de se formarem coalizões democráticas baseadas em princípio e metas, mas o que vemos ser alcançado, ao fim das contas é um tipo de angústia ‘cósmica’, que diz muito mais à psique coletiva do que as recomendações, alertas e exortações baseados em ideologia técno-científica completamente ineficazes. E assim, a partir de uma crise democrática monumental passamos a ver e conviver com movimentos em escala de extrema direita, que seguem sendo negacionistas, anticomunistas, intolerantes religiosos, xenófobos, homofóbicos e racistas. São espantosamente sustentados por magnatas brancos do vale do silício que estabeleceram uma espécie de ditadura ou tirania tecnocrática transhumanista.
Esse tipo de pensamento único é filosoficamente distante da ideia de humanidade e a materialidade disto aparece como ódio, incitação à violência, extermínio e desprezo pela vida.
Assim, aproximando-nos da nossa questão, vamos nos deparando com uma nova onda de catastrofismo negacionista que se alastra pelos quatro cantos como um monstro sustentado por visões de aniquilamento do mundo, do homem e das espécies em geral. É como se tivéssemos alcançado uma síntese ampliada das nossas angústias psíquicas coletivas baseadas em tonalidades catastrofistas-alarmistas ou para usar o nosso termo específico, apocalíptica.
Do desejo de lidar com esses temas que relacionam catastrofismo apocalíptico e crise psíquica coletiva no planeta é que o autor deste artigo decidiu partir do pensamento de Jung e Junguianos e seguir na direção de uma conversa elucidativa baseada em escuta empática e raciocínio crítico. E a partir desta convicção, a questão que move a alma do autor apareceu desta forma: o que Jung tem a ensinar para psicólogos e psicoterapeutas que fundamentam parte de sua prática clínica na visão budista do mundo? De que modo Jung pode nos ajudar a entender melhor o que estamos deixando de fazer?
Meu exercício aqui será o de escutar o que Jung diz sobre a crise de seu próprio tempo e reunir o que no budismo chamamos de conselhos do coração que possam ser oferecidos para as gerações atuais de psicoterapeutas que se vêem implicados com as questões complexas e destrutivas de seu tempo e carecem de ferramentas e orientação para lidar com tais cenários.
Como veremos, Jung ofereceu conselhos para gerações futuras. Um exemplo é a sua obra Presente e Futuro (OC 10/1). E por isso, a suposição inicial deste artigo é um tanto óbvia: se o que importa é enfrentarmos visões de fim de mundo baseados em tecno-pessimismo e forte adoecimento mental coletivo então sim, há lições extremamente importantes a aprender com Jung.
Com esta tarefa, num primeiro momento, haverá um diálogo com Jung e Edinger para que se tente entender melhor como os conceitos de arquétipo e apocalipse podem ser integrados. Depois, avançaremos no tema da crise psíquica coletiva e ouviremos mais Jung em sua relação com as obras da série Civilização em Mudança juntamente com algumas trocas muito úteis de cartas de Jung com amigos e interlocutores. Ao fim, será colocado em foco o modo como Jung pareceu tratar dos dilemas políticos e culturais de seu tempo, tendo por intenção alertar gerações futuras sobre os riscos da guerra.
Arquétipo do apocalipse
O autor lembra de ter assistido em 2014 o filme Melancholia (2011) de Lars Von Trier. Em momento algum ele imaginou que a película tratava da temática dos momentos imediatamente anteriores à destruição total do planeta Terra. A atriz Kirsten Dunst no papel de Justine está exuberante e ao ritmo da Ópera Tristan und Isolde (1857-1859) de Richard Wagner (1813-1883) o filme vai se consumando em dois atos: o primeiro a partir dos preparativos dos rituais matrimoniais (de Justine) e tendo como pano de fundo uma sequência de tomadas que caracterizam a trama como se estabelecendo numa sociedade aristocrática. Depois, há um segundo momento em que aos poucos o espectador vai sendo conduzido de uma estética que simula uma fina educação aristocrática onde tudo parece civilizadamente feliz e completo para um cenário de barbárie e desespero crescentes. Toda a ‘ordem’ é solapada, toda a humanidade é destituída e ao fim, depressão, desespero, loucura, cólera e resignação deprimida se manifestam como o grande último ato da existência. O planeta Melancolia finalmente vai se agigantando no horizonte terrestre e por fim, choca-se com o nosso planeta, causando a última e definitiva destruição deste lugar que chamamos de casa.
Para o contexto em que o autor deste artigo estava metido à época, o filme em si foi significativo, para não dizer impressionante. Talvez tenha sido algo marcante naquela noite, deve ter havido emoção de alguma forma e o autor poderia mesmo ter tido alguma resistência para dormir. Ainda assim, assistiu o filme com os olhos de quem sabia da relativa distância entre a força expressiva do mundo da vida husserliano (lebenswelt) e o realismo mágico em que a sétima arte geralmente se assenta.
No entanto, teve um sonho naquela noite que considerou como um pesadelo aterrorizante. Estava em meio a uma rua, com casas, postes de luz, um cenário urbano e olhando para o horizonte viu diante de si um planeta ganhando contornos e se aproximando da Terra. Na medida em que ele realmente toma toda a extensão do vórtice celeste e se agiganta precipitando-se como um colosso vindo em sua direção, teve um sentimento instantâneo de medo, pior…pânico e terror. Aquilo que no tecido onírico era tão somente um olhar sem olhos, um ver sem identidade corporal, ressoou de tal forma que despertou sentando na cama e precisando de algum tempo para entender que não era real. Seu pesadelo foi como um sonho alucinatório que fez ruir completamente a distinção entre realidade e fantasia.
O que salta à atenção aqui é que o filme é ficcional e os eventos no sonho não são reais, mas a sensação de desconforto com a trama da película, o contemplar silente e absorto antes de dormir certamente induziram no sonho aterrorizador a liberação em forma manifesta do arquétipo do apocalipse que o fez estremecer e que foi sentido como real. Jung (2023, p. 122) diz que é na simultaneidade de imagem e de emoção que o arquétipo se torna numinoso ou seja, torna-se um dinamizador da energia psíquica. Assistindo ao filme, uma ficção e na sequência vivendo um terrível pesadelo o autor teve uma experiência genuína desta simultaneidade e tal condição lhe fez experimentar a força de uma imagem arquetípica que pode ser classificada como a ‘máscara de Deus’.
O tema do arquétipo do apocalipse e o caos psíquico coletivo se estabelece aqui. O filme projeta o efeito atordoador nos termos de imagens e emoções sobre um arquétipo da desordem e da destruição. Diante de um símbolo da totalidade o caos psíquico se manifesta no ego de diferentes formas. Cada indivíduo reage emocionalmente de um modo diante de uma imagem tão poderosa, mas o delírio, a perda da autonomia face a presença esmagadora da grande sombra pode sim atingir a todos.
Em Resposta a Jó, Jung (OC 11/4, §648) se dá conta de que o arquétipo é totalmente desimpedido, ou seja, ele pode se apoderar completamente do indivíduo e como se não bastasse, tem o poder de determinar a direção que um indivíduo pode tomar em sua dinâmica existencial interna e externa. Pensando nestes termos, é como se pudesse haver um terceiro desdobramento desta sequência de filme e do próprio sonho. Impelido e impactado pela projeção onírica o ego poderia se projetar movido por um tipo de psicose messiânica e quem sabe lograr se transformar num grande propagador da verdade do fim do mundo. Não houve um sonho com o fim do mundo? Então eis neste sonho arrebatador o sinal, a profecia. Impulsionado por um grande terror, o autor poderia se tornar um propagador, um salvador autoproclamado dos fins dos tempos e fazer de uma atitude messiânica o seu exercício de fé cega. E esta é uma das características do inconsciente coletivo manifestado por formas arquetípicas. Edinger (1999, p. 251) em seu livro Arquétipo do Apocalipse faz uma importante observação a este respeito: “[…] o arquétipo do apocalipse significa essencialmente a “vinda do si-mesmo” […] contudo, se o si-mesmo “chega” de forma inconsciente ou primordial, o processo manifesta-se como uma combinação paradoxal de opostos” ou seja, como impulsos “inumanos” encontrados no salvador e na besta. Sendo um padrão psíquico primordial do próprio inconsciente coletivo e igualmente um sujeito com intencionalidade e dinamismo próprio, os arquétipos e seus símbolos ou imagens podem se manifestar, de acordo com Edinger (1999, p. 31), na alma do indivíduo como “[…] bocas devoradoras – caçando pequenos egos de que possam se apossar e depois continuar vivendo através destes”.
Por isso, quando Jung em Resposta à Jó (OC 11/4, §557) diz que devemos equilibrar a liberum arbitrium do inconsciente coletivo ele se refere a uma adequação. É muito melhor que a consciência esteja certa do caráter espontâneo e intencional desses arquétipos que operam por essa grande sombra que é o inconsciente coletivo. E conclui a respeito do Livro bíblico do Apocalipse: “O Apocalipse é tão pessoal e ao mesmo tempo tão arquetípico e coletivo, que é preciso, sem dúvida, levar sempre em conta estes dois aspectos.” (OC 11/4, §729) Portanto, aquilo que se manifesta no todo consciente de um único indivíduo, pode se projetar na psique de toda uma coletividade.
A crítica ao Jung ‘místico’ associado à imagem de defensor de deuses e demônios, do inconsciente coletivo como uma grande sombra manifestadora de formas simbólicas ou imagens arquetípicas como independentes do humano nem de perto conseguiu desqualificar a intenção científica que ele sempre fez questão de demarcar em relação à sua própria obra. A ideia de que a projeção de um arquétipo do caos e da destruição eram resultado de forças de compensação no indivíduo, não poderia mesmo ser compreendida por uma mentalidade racionalista e cientificista do seu tempo. É uma ideia inusitada tanto para a igreja como para a ciência moderna considerar que haja uma agência não humana interferindo no livre arbítrio ou na faculdade de escolha baseada em dedução e indução. Jung atacou com as suas afirmações sobre o inconsciente coletivo, os sonhos e a atividade consciente as principais pilastras do racionalismo cristão e do credo científico de seu tempo. Sem desconsiderar a exuberância das formas válidas de expressão humana como o cristianismo, Jung investiu numa espécie de renovação politeísta baseada não em crença mas em pesquisa com a psiquê em primeira e terceira pessoas, por um lado, e descentrou a visão antropocêntrica predominante desde a segunda onda renascentista instauradora da modernidade e das visões cientificistas de mundo, por outro lado. Veja que impressionante esta forma de colocar a questão:
Temos os meios de comparar o homem com outros animalia psíquicos e dar-lhe novo ordenamento que lança uma luz objetiva sobre sua existência, isto é, como um ser operado e manobrado por forças arquetípicas, em vez de sua “livre vontade”, isto é, seu egoísmo arbitrário e sua consciência limitada. Deveria aprender que ele não é o senhor de sua própria casa e que deveria estudar cuidadosamente o outro lado de seu mundo psíquico que parece ser o verdadeiro soberano de seu destino. (JUNG, 2018, p. 289-0)
Naturalmente, arquétipos por serem manifestações típicas do inconsciente coletivo, não podem ser concebidos como tendo uma relação direta com o tempo e com o espaço. Então, todo o material apocalíptico de qualquer época sempre se pronunciará a partir da união dos opostos arquetípicos, que nesse caso de símbolo da totalidade, como numa imagem de Deus que sempre irá aparecer como eventos devastadores e regeneradores, tanto na psique individual como coletiva e daí, atingir o mundo da vida a partir das manifestações as mais diversas imagináveis.
O “Apocalipse” – e o material apocalíptico de qualquer tipo, de qualquer época – significa que os “opostos” arquetípicos que compõem a imagem de Deus foram ativados e desencadearam o dinamismo da coniunctio ou do problema arquetípico do “amor e da guerra”. Os opostos, de qualquer tipo, ou se unem no amor ou se confrontam na inimizade. Quando este dinamismo transpessoal toca o ego consciente, ele envolve a psique humana, tanto individual quanto coletivamente. (EDINGER, 1999, p. 227-8)
O que chama a atenção nessa mesma passagem é o modo dramático em que Edinger trata do apocalipse. Seria como um arquétipo que tem o poder de ‘devorar’ e ‘consumir’ os seres humanos, estejam eles na antiguidade, na idade média, na moderna ou contemporânea. Cada indivíduo em cada cultura participa ao seu modo pessoal e coletivamente deste mesmo misterium. O arquétipo do apocalipse é como uma manifestação na psique do indivíduo que tem a capacidade de se replicar sincronicamente numa coletividade e impactar em ambientes os mais diversos. Quando publicou seu livro no final dos anos noventa do século passado, Edinger vivia numa sociedade ocidental que dava os seus primeiros passos na transição do analógico para o digital. Assim, as evidências de que o arquétipo do apocalipse estava ativo naquela época eram exemplificadas por disseminação deste sentimento básico presentes em livros, filmes e programas de TV, mídias e produtos clássicos da modernidade. Os eventos catalisadores sempre se alternam em invasão alienígena, mega eventos de desastres naturais, guerras, epidemias e destruição planetária por desequilíbrios no sistema solar ou no universo. Olhando ainda para o espectro do arquétipo do apocalipse Edinger (1999, p. 33-4) faz referência aos cultos, seitas, religiões fundamentalistas, todos podendo gerar indivíduos que incorporam a figura do líder salvador, podendo mesmo chegar a induzir a morte de milhares de pessoas. E finalmente, cita um outro extremo da possessão de tal arquétipo que são os movimentos ambientalistas de todos os tipos.
Estamos em 2024 e se o professor Edinger estivesse vivo, certamente se surpreenderia com a tamanha complexidade deste mundo. Provavelmente, ficaria espantado com as possessões atuais do arquétipo do fim do mundo. Vivemos em uma era da hiper factualização da vida. Os transbordos, os excessos desse modo de viver, trocar, conhecer e interagir como uma comunidade mundial conectada por computadores e gerenciada por algoritmos e agora por inteligência artificial tem gerado tanta informação e adoecimento psíquico coletivo que um contraste entre um tempo apocalíptico de toda a história da humanidade parece ser incomparável com o modo como as pessoas têm reagido aos desafios de uma sociedade extremamente tecnológica. Como nunca a completa desumanização da existência corre o risco de acontecer, não porque seja uma promessa para adiante, mas simplesmente porque já está acontecendo como uma crença atualizada sobre um fim do mundo apocalíptico baseado em forma antigas e atuais de compreensão dessa possibilidade, e para os catastrofistas, desta fatalidade.
Então, a gramática humana anterior, baseada em processos de desumanização destrutiva identificada por epidemias ou guerras continentais, ameaças de destruição atômica e uso de seres humanos como máquinas de destruição ou corpos a serem dizimados, não foi superada necessariamente, mas sim somada a nova gramática baseada na deflagração de mega eventos planetários como pandemias massivas, super ciclones, difusão de ideias baseado em fake news, destruição nuclear multipolar e o grande medo midiático que é a discutida terceira onda de desenvolvimento das IA. Esse tipo de catastrofismo hiper-realista, o arquétipo dos arquétipos é o senhor absoluto de todos os tempos e desesperanças – e que teremos de contornar.
Caos psíquico coletivo
O curto século vinte apontava para um zeitgeist marcado por toda a sorte de conflitos e um dos principais era a da guinada da Europa à extrema direita através da ascensão de tiranos e ditadores como Mussolini, Salazar, Franco e Hitler. Um Estado necropolítico foi sustentado ideologicamente por um cultura cientificista debil e patológica que sustentou práticas de exterminio de massa baseados em eugenia, pureza racial, determinismo biológico e toda a sorte de racismo e assassinato em massa e que estiveram diretamente vinculadas ao nazismo e ao fascismo, mas também à democracia americana. O impacto foi devastador para a psique humana. O “problema das massas” gerou muitos debates por todo o mundo, e dezenas de livros vieram à luz. Pensadores e intelectuais como Wilhelm Reich, S. Freud, Ortega y Gasset, T. Adorno, o próprio Jung publicaram e analisaram esse mundo em chamas nos termos da confrontação direta contra a bestialização das massas.
Em uma conferência pela British Broadcasting Corporation de 1946 que foi intitulada “A luta com as sombras”, Jung revelou que já em 1918 passou a perceber estranhas regularidades na psique de seus pacientes e que furtivamente o seu próprio ego reagiu apocalipticamente a aquele período de guerras:
Como já mencionei aos senhores, a maré de primitividade, violência, em suma, a expressão de todos os poderes obscuros que havia crescido após a Primeira Guerra Mundial, anunciava-se nos sonhos individuais na forma de símbolos coletivos e mitológicos. No momento em que esses símbolos aparecem num grande número de indivíduos e não são assimilados, eles começam a unir com força magnética os indivíduos isolados. Assim tem origem uma massa. (JUNG, OC,10/2, § 729)
Este não é um sentimento isolado, pelo contrário, essa forma de descrever uma atmosfera existencial em rápida degradação apontava não apenas para distúrbios psicológicos vinculados à clínica, mas se expressavam claramente como expressão da inconsciência coletiva refletida nas massas. Vindos dos sonhos, tais manifestações impessoais eram compostas por motivos mitológicos ou arquetípicos.
O que essa memória traz para Jung é a tese de que esses distúrbios psíquicos se manifestavam como arquétipos que “[…] exprimiam primitividade, violência e crueldade.” (OC, 10/2, § 447) Jung relata que via duas expressões básicas de sofrimento psíquico: uma dela a depressão e a outra uma grande agitação. Parece-me que essa condição não nos é estranha hoje. Como sabemos, para Jung a condição para a psicose em massa começa e termina no indivíduo, seja aquele que se sente o escolhido para liderar ou aquele que se sente impelido a agir como os demais. Vale notar que Jung responsabiliza todas as formas de materialismo como sendo a condição primeira para a progressão de uma manifestação do inconsciente coletivo baseado em formas arquetípicas destrutivas. Muito provavelmente, num mundo em rápida secularização, tratar manifestações psíquicas por termos religiosos como ‘alma’, ‘deuses’, ‘demônios’, poderia gerar muito estranhamento nos círculos de intelectuais e na própria imprensa. Mas Jung realmente não se importava em pagar o preço da crítica ou do desdém. Acreditava que deuses e demônios existiam, não no sentido fantástico ou como descrito pelas religiões mais literais, mas sim como projeções do ego de conteúdos vindos do inconsciente individual e coletivo .
Por isso, quando eventos disruptivos massivos como guerras mundiais, epidemias, genocídios e toda a sorte de miséria foram dando contorno histórico a primeira metade do século vinte, Jung (2018, p. 289) como observador e como psicoterapeuta, foi confirmando e elaborando suas compreensões sobre a psique humana. Dizia: “nossa consciência apenas imagina que perdeu seus deuses; na realidade eles ainda estão lá e ela só precisa de uma certa condição geral para trazê-los de volta com força total.”
O símbolo que Jung associou ao risco do retorno da ‘besta loira’ foi Wotan (Odin), o deus nordico principal dentro de uma estrutura politeísta. Se a consciência não compreender em que precisa se adaptar e como gerar uma nova orientação e se mover nessa direção, o resultado é que o arquétipo irá intervir e pode ser de modo demoníaco.
A compreensão relacionada ao caos psíquico coletivo vistos pela lente do pensamento de Jung, pode ser traduzida por essa percepção completamente original para um ocidental. Disse Jung (OC 10/2 §448s): “Quando essa espécie de movimento compensatório do inconsciente não consegue ser absorvido pela consciência individual, pode gerar uma neurose ou até uma psicose.” Essa tese não foi aceita ou sequer compreendida no meio médico e psicoterápico do tempo de Jung, mas ela seria perfeitamente compreendida por outras epistemes que também eram vistas com desconfiança no ocidente, como o budismo, por exemplo.
O certo é que Jung estava convicto de que desde o fim da primeira guerra mundial indivíduos isolados por depressão ou agitação mental, estavam tendo uma maior recorrência de sonhos associados a símbolos coletivos e conteúdos mitológicos destrutivos. Certamente essa era a indicação de que tais símbolos não estavam sendo assimilados por um tipo específico de magnetismo e assim, teria origem uma massa. Essa massa, sob a orientação e presença de um líder idolatrado teria sido organizada sob a forma de um exército da destruição e da tragédia. Cada soldado visto como uma partícula na massa, sugestionado e completamente desobrigado da sustentação de qualquer responsabilidade moral. Jung tinha a compreensão de que “[…] a pessoa se torna mais corajosa, mais presunçosa, mais arrogante, mais insolente, mais imprudente; mas o eu é diminuído e é empurrado para o segundo plano em favor da média.” (JUNG, 2020, p. 218). Ao fim, o homem-massa organizado por impulsos incontroláveis projetados como arquétipo do apocalipse está fadado a autodestruição dado o orgulho, a surdez e o egoísmo causado pela sua necessidade de obter algum reconhecimento e prestígio frente ao líder ou ao sistema que o sustenta.
Numa notável entrevista chamada The Post-War Psychic Problems of the Germans, Jung (1945) elaborou ainda mais sua percepção sobre o caos psíquico vivido pelos alemães durante a segunda guerra mundial. Respondendo a uma pergunta sobre as mudanças que o fim da guerra geraria na psique dos alemães e se eles estavam despertando de um longo e terrível sonho, Jung foi categórico. Disse que tentar dividir os alemães em decentes e indecentes seria uma grande ingenuidade. Estivessem conscientes ou inconscientes, ativos ou passivos durante os anos da guerra, todos eles teriam sua parcela de participação nos horrores. Parece irônico ao dizer, que muitos alemães não sabiam o que estava acontecendo, ainda assim sabiam e por isso Jung não deixou de afirmar que os alemães, ao fim da guerra, estavam com um único sentimento de miséria e a única redenção possível está “[…] em uma admissão completa de culpa. Mea culpa, mea maxima culpa!” (JUNG, 1996, p. 154)
Em Depois da Catástrofe (1945/1946) ele escreveu sobre a psicose de Hitler como “pseudologia phantastica”, e sobre sua sombra bem como sobre a expressão da própria sombra coletiva do povo alemão. Este escrito foi considerado por Jung como o mais difícil de sua vida pois “[…] nunca um artigo me custou tanto esforço moral e humano. (OC 10/2, § 402) É neste texto que Jung aparece como um europeu que se declara profundamente perturbado mas também de algum modo responsável pela tragédia do holocausto. É aqui que ele mais desenvolve a ideia de culpa coletiva e o sentimento de inferioridade:
Essa identidade interior ou participation mystique com os acontecimentos da Alemanha me propiciou, de maneira penosa, experimentar mais uma vez o alcance do conceito psicológico de culpa coletiva. Desse modo, não poderia abordar esse problema com o sentimento de superioridade e sangue frio, mas com o reconhecido sentimento de inferioridade. (OC 10/2, § 402)
E eis aí um conselho precioso para o futuro. Duas posições morais que estão ligadas a dor e liberação profundas ao mesmo tempo. Reconhecer a culpa e o sentimento de inferioridade poderia ferir muitos orgulhos identitários hoje em dia. Do modo como Jung coloca e tendo-se em mente o tipo de cilada em que estamos nos metendo como humanidade massificada, os ‘murmúrios do Wotan com cabeça de Mime’ que prenunciam a natureza apocalíptica de eventos futuros, podem ser escutados por todas as partes.
Conselhos para o futuro
O sistema não desliga mais! Somos incessantemente bombardeados por conteúdos apresentados em dispositivos com telas de cristal líquido movidos a bateria de íon-Lítio que funcionam como vampiros digitais e desregulam nossa neuroquímica de um modo tão eficiente que nos fazem parecer os únicos responsáveis pelos efeitos colaterais dissociativos dessa enorme encrenca em que nos metemos. Há várias imagens que nos remetem ao arquétipo do apocalipse. A do psicopata anarcocapitalista, o narcisista grandiloquente disfarçado de um algoritmo ou de uma sedutora IA, a imagem de um bilionário anti-humanista ou de um líder de Estado com pretensões de dominação mundial. E associado a essas imagens temos uma variedade de dores psicológicas e somatizações coletivas que aparecem como novas formas de sofrimento intenso e que encontram base de expressão num mundo que é percebido como cada vez mais acelerado e massificado ao extremo.
Ironicamente, nos dias atuais estamos lidando com riscos à vida coletiva verdadeiramente globais e ao que parece no mínimo intuímos o quão projetivos estamos na relação com essa busca desesperada pela imago divina. Não temos coragem de mostrar aos outros como a extensão da nossa vontade de potência tem nos levado em direção às terríveis máscaras de Deus. O novo utopismo de extrema direita que aparece como tecno-otimismo e transhumanismo interplanetário é totalmente catastrófico.
Ao seu tempo, em contraste, um dos alertas mais repetidos por Jung sobre a tragédia política e cultural de seu tempo era o de que estávamos deixando de investigar o inconsciente ao preferir procurar por extraterrestres baseados em especulações vazias. Nada mais atual! O próprio Jung se sentia um genuíno representante daqueles poucos homens que entendiam a importância desta tarefa, sobretudo por ser aquela que levaria às futuras gerações o poder de manifestar compreensões mais profundas a respeito do que seria a coisa certa a fazer. Acessar e investigar o inconsciente poderia nos levar a compreender o que é como sendo o que é e por isso´poderia nos ajudar a agir de modo mais lúcido em meio ao caos. Essa é uma das reivindicações mais antigas da humanidade e uma tecnologia intelectiva não-humana que se manifesta como um poderoso arquétipo da ordem.
Jung sabia que o inefável escopo do inconsciente guardava em si a potência de ser vida e ser morte, criação e destruição. É como se Jung tivesse chegado a compreensão de que os arquétipos do apocalipse ou da ordem estivessem ali se manifestando a todo o momento. Realizamos numa única vida a criação e a destruição do nascer e do morrer. Realizamos num único dia a criação e a destruição de acordar como quem se encontra pela primeira vez e dorme como quem perde tudo o que conquistou, incluindo a consciência de si.
Olhar para o deus da destruição, podendo ser Wotan, Shiva ou Khali, e ver ali formas simbólicas arquetípicas manifestadas na consciência do indivíduo desde o inconsciente coletivo e entender que passado, presente e futuro estão integrados como num tempo sem tempo, é de uma sutileza extraordinária. Jung realizou essa compreensão, não há dúvida. Nesse sentido, sua compreensão do inconsciente não é teoria. É reconhecimento e realização!
Ainda assim, ele se ocupava dessa tarefa de gerar compreensões válidas, nos termos da psicologia que estabeleceu, que pudessem ser apresentadas ao mundo para aliviar o estado geral de sofrimento psíquico e corporal que via por todos os lados. Todas as formas delirantes, todo o tipo de sofrimento vivido ou oferecido a outros são como expressão do inconsciente que se faz desse jeito como complexio oppositorum. (OC 11/2, §278)
Jung se debruçou sobre a importância de ultrapassarmos, com o apoio do ego e da consciência, os próprios mecanismos de perpetuação do bem e do mal, ou da união dos opostos como o tensionamento contínuo do inconsciente e suas formas arquetípicas. Escreveu ele em junho de 1956:
Sem consciência humana para se refletir, o bem e o mal simplesmente acontecem, ou melhor, não há bem e mal, mas apenas uma sequência de eventos neutros, ou o que os budistas chamam de cadeia Nidhana, a concatenação causal ininterrupta que leva ao sofrimento, velhice, doença e morte. (JUNG: 2020, p. 310)
Ultrapassar essa polaridade entre o bem e o mal não é uma impossibilidade para Jung. Realizá-la dependeria da nossa capacidade de olharmos para eventos associados a sofrimento e reconhecermos sua própria lógica interna. Ao utilizar como exemplo a teoria dos doze elos da originação dependente do budismo, Jung sugeriu que reconheçamos como aquilo que chamamos de bem e mal é uma construção, um encadeamento interdependente de ação e resposta que leva todos os seres sencientes à condição do nascimento, do envelhecimento, do adoecimento e da morte. Acolher essa compreensão como um conselho para o futuro é o caso. Estamos sendo convidados a desmontar de trás para frente essa cadeia de elos interdependentes. Então, ainda que estejamos profundamente ameaçados por visões de fim do mundo e por processos de intenso adoecimento psíquico, segue fazendo sentido sustentar visões elevadas de mundo mesmo em meio ao caos.
Já em 1960, um ano antes de sua morte, Jung informava a um amigo que vinha estudando há meses os ensinamentos do Buda da coleção do cânone Pali. O que chama a atenção nessa carta é que Jung estabelece uma relação muito peculiar com os ensinamentos budistas. Aproximar-se dos ensinamentos budistas era tentar entendê-los desde o ponto de vista do carma e do renascimento, ou seja, desde uma perspectiva de continuidade e não de destruição. Ainda que Jung sentisse e reagisse aos tempos catastróficos em que esteve metido por quase toda uma vida, sua opção ao fim da vida, foi aplicar um esforço último para ultrapassar a ideia de morte como destruição. É há uma sutileza aí que desafia a desesperança de seu próprio tempo. (JUNG, 2020, p. 548) Estamos aprendendo com Jung a nos movimentarmos o mais ampla e elevadamente em meio ao caos cultural e a tempos sombrios.
Numa outra carta do mesmo período enviada a Eugen Bohler, Jung parece oferecer outros conselhos preciosos para o amigo. Naquela idade, Jung havia tido experiências de quase morte por várias vezes. Seus mementos mori são esses instantes em que insights reveladores pareciam dar o ar de sua graça. (JUNG, 2020, p. 544)
Para um correspondente anônimo, Jung faz questão de perguntar-lhe de modo direto e incisivo: “[…] você já viu pelo menos um verdadeiro rimpoche tibetano?” (JUNG, 2020, p. 333) E responde: “Eu já, e até mesmo um que estudou por 20 anos em Lhasa. Eles sabem muitas coisas interessantes, mas estão a quilômetros de onde nós, no mundo ocidental, pensamos que eles estão.” Lendo várias de suas cartas do período de 1952 até o ano de sua morte, fiquei com a impressão de que ali estava alguém a quem poderíamos apresentar aos outros: Ele [Jung] sabe muitas coisas interessantes, mas está a quilômetros de onde nós, em nosso mundo caótico e cinicamente tecno-alarmante do século 21, pensamos que ele esteja.
Podemos ter uma pista da visão antecipatória de Jung nessa passagem da Resposta a Jô:
Desde o aparecimento do Apocalipse sabemos, de novo, que Deus não somente deve ser amado, como também temido. Ele nos cumula com o bem e o mal, pois, do contrário, não haveria motivo de temê-lo. E como ele quer tornar-se homem, é no homem que deve realizar-se a união de suas antinomias. […] Como lhe foi posto nas mãos um poder por assim dizer divino, ele não pode mais continuar cego e inconsciente. Deve conhecer a natureza de Deus e o que se passa no interior da metafísica, a fim de compreender-se a si mesmo, chegando deste modo ao conhecimento de Deus. (OC 11/4, § 746s.)
É como se Jung tivesse clareza de que o arquétipo da totalidade se realizava sistematicamente de modo destrutivo quanto mais o ego desesperado em busca do éden externo só encontrava nada além de destruição. A nossa eterna busca pelo cálice sagrado, pela redenção, a iluminação, utopias, vales verdejantes, paraísos, a nossa ânsia pela perpetuação da vida, o desejo de conquista sobre o envelhecimento, o adoecimento e a morte tão somente resultam nessa angústia que nunca passa e que se estabelece como potencial construtivo/destrutivo pendular. Jung era muito intuitivo e já na velhice, particularmente socrático. ‘Compreender-se a si mesmo’, ‘conhecer a Deus’ como o gesto vindo do consciente, da racionalidade que poderia nos conectar com os aspectos mais brandos do inconsciente. Quando inquirido sobre o por que não utilizava seu reconhecimento e prestígio mundial para denunciar e ajudar no combate às atrocidades que estavam acontecendo na Europa e no mundo, Jung respondeu: “Não saberia dar nenhum motivo racional. Em casos semelhantes costumo esperar por uma ordem de dentro. Não percebi nada disso.”(JUNG, 2020, p. 210-1)
Jung tinha uma compreensão pragmática sobre a absurdidade da realidade do mundo e da Europa e o quão perto estava de tudo isso. Tinha a sensação de que não haveria o que pudesse ser dito que mudaria o destino da humanidade. Disse ele numa ocasião: “A situação mundial ficou tão irremediavelmente fora de controle que mesmo as palavras mais comoventes não significam nada. Seria mais pertinente, ou assim me parece, se cada um de nós tivesse certeza de sua própria atitude.”(JUNG, 2020, p. 503) Há uma sensação de apatia e resignação nesta passagem, mas podemos igualmente incorrer no erro da presunção.
Esse individualismo radical sempre foi um ponto crítico do pensamento de Jung, mas era o modo como o seu tipo introvertido intuía até onde deveria se envolver na política. A partir das massas e do profundo irracionalismo coletivo associado à barbárie é que não seria o caso. E esse é um aconselhamento direto, um sopro anti-apocalíptico dentro de uma dada realidade. Ver a civilização se desmanchando à sua frente, reconhecer a sua impotência para conter o Deus furioso, ainda assim, não fez de Jung uma pessoas desesperançada ou sem respostas para lidar com a realidade circundante.
Conclusão
O arquetípico associado ao apocalipse, que é a da destruição do mundo interno e externo, pode ser compreendido como um estágio no desenvolvimento de um ethos ou de um rito coletivo que prevê outros estágios ou fases que não necessariamente precisam estar associados à destruição. Uma ordem pós-apocalíptica é apontada desde o lugar das religiões, da ciência ou mesmo da vida ordinária e Jung se esforçou muito para deixar evidente essa compreensão. O apocalipse bíblico ou a destruição do universo são sempre sucedidos pelo surgimento de novos mundos. A morte é apenas uma etapa dentro de um ciclo incessante de ressurgimentos, seja a partir de um útero, de um sopro divino ou de uma explosão atômica primordial.
A certeza de Jung veio da confiança de que a presença em nossas vidas de forças ou impulsos que se manifestam a partir do inconsciente pessoal ou coletivo pode ser reconhecida pela intuição de que há uma realidade supra-humana, inefável e que se manifesta como uma totalidade, um sujeito, uma agência como um si mesmo independente do ego ou da vontade do ser. Nominar tal intuição ou presença é um detalhe que responde à cultura e a necessidade de evocação de uma figura de autoridade. Este reconhecimento pode ser feito de dois modos surpreendentes: um profundamente pacificador e outro profundamente aterrorizador. O mesmo Deus ou deuses, rei ou rainha, o Estado ou o pai e a mãe podem ser bons e maus, podem ser generosos ou destruidores. Para Jung, eis a dinâmica e a absurda extensão da nossa própria psique.
Com este artigo tentamos alcançar esta compreensão de que precisamos substituir a ideia fixa e dualista do fim da história como o desfecho definitivo de todas as coisas, pela compreensão confiante de que a manifestação do arquétipo da destruição, ao que se pode intuir, não destruirá aquilo que lhe é anterior e que sustenta criação e destruição. Jung e os budistas já sabiam, de certa forma, aquilo que Mark Fisher6 reconheceu a pouco tempo, que é o fato de que estamos lidando constantemente com uma repetitiva história do fim, e essa perspectiva muda tudo para nós.
Primeiro que o fim e a destruição se tornam etapas de um longo e estranho processo de vida e morte, de criação e destruição e, assombrosamente, isto que persiste é a nossa tarefa de reconhecimento e realização. O processo de individuação inclui essa longa jornada da psique em tornos de diferentes imagens e materialidades, sempre perenes e efêmeras ao mesmo tempo.
A integração dos opostos é o caso, e aprendermos a lidar com isso (ao menos suportar ou se entregar) que se move e manifesta agência é a nossa grande tarefa. Se entendermos que o inconsciente coletivo é uma inteligência em si-mesma e que está além e aquém da nossa possibilidade de explicação com palavras então temos de aceitar o completo insight de Jung. Não é possível inscrever o inconsciente coletivo nos três tempos ou num espaço do tipo euclidiano. Isso que se manifesta como um em si-mesmo nos possibilita validar modos coetâneos de representação. Para escaparmos das visões catastrofistas e utopistas que descrevem tudo como dualidade, separatividade e sequencialidade, temos de assumir uma posição interna que seja completamente estranha ao status quo e que se sustente completamente em si como sendo o que é independente do mundo das imagens e das materialidades.
A obra de Jung pode ser uma ferramentaria como um grande corpus aconselhador útil para o futuro e para aprendermos a olhar para aquilo que está aí e que ultrapassa completamente todos os referenciais e temporalidades mundanas. O ‘trans-humanismo’ de Jung não é delirante e apocalíptico como vimos neste artigo, pelo contrário, é profundamente acalmador se entendermos que a nossa tarefa como indivíduos é gerar autoconhecimento a partir de fatos psíquicos reais, que bem podem ser completamente desconhecidos pela maior parte da humanidade.