Técnicas Expressivas Coligadas a Trabalho Corporal

Técnicas Expressivas Coligadas a Trabalho Corporal

Irene Gaeta

Dra. em Psicologia Clínica, Analista Junguiana filiada Association for Analytical Psychology-IAAP (Suíça).

Atuo como Psicóloga Clínica desde 1989. Analista Junguiana, membro didata do Instituto Junguiano de São Paulo-IJUSP, da Associação Junguiana do Brasil-AJB, da International Association for Analytical Psychology-IAAP (Suíça). Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Mestre em Gerontologia, Coordenadora do Departamento de Arte e Psicologia Analítica da AJB.

Professora da PUC-/SP no curso Psicologia. Coordenadora do curso de Pós-Graduação (Lato Sensu) Psicoterapia Junguiana, de Psicologia Analítica e de Terapias Corporais e Artísticas em Psicologia Analítica.

 

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Este artigo descreve as técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal, como uma contribuição à ampliação do entendimento e do desenvolvimento de uma outra via de acesso à psique humana.

Chamarei de técnicas expressivas coligadas a trabalho corporal ao conjunto de atividades que proponho com a finalidade de investigar as marcas do corpo, bem como as suas memórias.

Lallery (l988) assinala que a memória, ou seja, o registro de nossa história feito pelo sistema límbico, mais especialmente pelo hipocampo, daquilo que temos vivido, efetua-se sempre. “(…) mas essa faculdade mnêmica de nada servirá se a reconstituição de nosso passado, com suas aquisições não puder ressurgir no momento em que necessitamos dela. (…) O comportamento do adulto que envelhece vai, então apoiar-se sobre um tripé: aquisições antigas, reconstituições e finalmente, motivação.” (Lallery 1988: 29)

Durante a minha prática em psicologia clínica e docência pude observar que meus analisandos de idades variadas lidavam com o tempo cronológico e interno de forma diferente. Às vezes pareciam ficar de certa maneira presos a situações passadas de modo que o presente não era experimentado em sua plenitude e o futuro nem sequer era visualizado. Muitas vezes experiências ocorridas no passado, como por exemplo uma cirurgia ocorrida há anos atrás, são experimentadas como se tivessem acabado de acontecer, ou uma experiência vivida por um antepassado podia ser sentida como sendo uma vivência interna. Chamarei estas marcas no corpo de memória corporal, pois me parece que, independente do tempo e do espaço, certas experiências ficam congeladas e são registradas como se ainda estivessem acontecendo.

Muitas vezes um toque corporal, um relaxamento, um pranayma (técnica respiratória), aliado a uma atividade artística, como o desenho, pintura ou modelagem, ou seja, as técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal, faz com que as memórias corporais reapareçam trazendo muitas lembranças passadas. Neste sentido, a memória também está presente em nosso corpo, transcendendo o tempo e o espaço. Na população idosa, estas marcas me parecem ser mais fortes, pois há uma emergência em resgatar e em transformar aquilo que, em termos de experiência de vida, ficou estagnado, para que possa fluir, ter um desenvolvimento, uma resiliência. Resiliência é um termo inicialmente emprestado da física, mas que, na literatura psicológica surgiu associado a pessoas que, tendo passado por experiências fortes, como a dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, podem não apenas sobreviver, mas também atingir uma qualidade de vida satisfatória após esse período.

Acredito que o ser humano tem a capacidade de estar em desenvolvimento sempre, independente de idade, sexo, religião, cultura. Bergson (1999: 203) afirma: “Nosso corpo, com as sensações que recebe de um lado e os movimentos que é capaz de executar de outro, é portanto aquilo que efetivamente fixa nosso espirito, o que lhe proporciona a base e o equilíbrio. (…) A atividade do espírito ultrapassa infinitamente a massa das lembranças acumuladas, assim como essa massa de lembranças ultrapassa as sensações e os movimentos do momento presente.” Por isto as técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal foram importantes, pois permitem acessar o universo invisível que nos impulsiona ao entendimento do visível.

Para Dethlefsen (1997), o valor de uma pintura não reside apenas na qualidade da tela e das tintas; os recursos utilizados para o ato de pintar são meios que permitem a expressão da pintura interior do artista. A tela e as tintas possibilitam a visibilidade do invisível, sendo, pois, a materialidade de um conteúdo metafísico. As técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal possuem como diretriz uma seqüência básica preparada de forma a garantir uma organização.

No começo há a sensibilização, realizada por meio de técnicas respiratórias. A respiração é uma das funções mais importantes do nosso organismo e está intimamente ligada ao estado emocional. Nascemos e a respiração foi o nosso primeiro ato voluntário; podemos dizer, então, que nascemos com uma respiração, assim como será a última coisa que faremos ao morrer. Ao modificar o ritmo respiratório, obtém-se uma modificação no estado emocional, há uma interiorização, uma introspecção, uma escuta de si mesmo.

Gaiarsa (1994: 18) afirma que: “A maioria dos homens não percebe que faz algum esforço para aspirar o ar que respira. A impressão ingênua – se os interrogarmos – é a de que o ar entre neles por força própria ‘sozinho’. A respiração é o nosso automatismo mais antigo e o mais freqüente, por isso ela é nossa ação mais inconsciente, mesmo quando esteja sempre ocorrendo.”

Ao prestar atenção à respiração, tornamos conscientes os aspectos de nossa personalidade que podem estar inconscientes; por exemplo a ansiedade, ou a agitação. Há então uma possibilidade de acessarmos certos níveis de nosso ser. Os yogues hindus desenvolveram a prática do pranayama – que são exercícios respiratórios destinados a ampliar e a refinar a percepção e o controle da nossa respiração, isto é, o desenvolvimento de nossa relação com o ar. A filosofia yogue considera que a respiração é o primeiro ato natural do homem ao nascer – inspirar profundamente, iniciando os processos metabólicos que lhe sustentam a vida. Por outro lado, ao abandonar a existência física, sua última atividade consiste em expirar pela última vez.

Dessa forma, segundo esta visão entre o nascimento e a morte, o que realmente se passa com relação à vida física é uma série ininterrupta de respirações. Para Miranda (1979: 61): “(…) Tudo mais é secundário e não se realizaria se não fora o simples fato de respirar. (…) A imensa gama de conquistas humanas, em todos os terrenos desde a mais ínfima atividade até as mais notáveis vitórias da cultura, da arte e da ciência, são meras conseqüências do ato respiratório. Sem ele a mente não funcionaria, os sentidos não cumpririam sua missão, a sensibilidade deixaria de existir, a vida se extinguiria e nada mais teria valor, sentido ou expressão para o ser humano.”

Gaiarsa (1994: 24) fala que a psicanálise não descobriu o valor psicológico da respiração, mas que coube a Reich inserir a respiração no contexto da psicologia. Ele diz: “Qualquer ativação da couraça muscular do caráter envolve sempre uma inibição respiratória. Esta fórmula básica, que ele desenvolveu de forma não sistemática. Ex. a atitude do orgulhoso o impede de exalar o ar até o fundo; o depressivo (tronco inclinado, ombros caídos) não consegue expandir o tórax adequadamente. Por ter um efeito tão profundo, tanto na personalidade como no organismo como um todo, muitas vezes as práticas respiratórias não são aceitas pelas pessoas, pois podem nos remeter ao cerne de questões emocionais ainda pendentes de solução. É com a respiração profunda que se pode apreender o sentido e a realidade vivida.”

Para Gaiarsa (1994:24): “… Um dos meios de influir sobre o nível de energia da personalidade é a respiração. Quando se hiperventila o pulmão, o id ganha forças e invade a musculatura, a fim de mover a pessoa na direção do desejo. (…) Paradoxalmente, o que se observa em clínica, na maior parte das vezes em que se solicita hiperventilação, é uma intensificação da inibição – acentuação de um ou mais elementos (anéis) da couraça muscular do caráter. Pode-se, pois, manipular mais ou menos o nível energético da personalidade, influindo sobre a respiração.”

Em Gênesis, temos.: “e Deus soprou-lhe o sopro divino…”. Fazendo uma analogia com Gênesis, dizemos que o bebê ao nascer, ao fazer a transição da vida uterina para a pós-uterina, é tomado pela alma na respiração. Ao cortar o cordão umbilical, ele passa a depender da respiração para viver. No futuro, quando nos depararmos com situações difíceis que nosfazem sentir medo, suspendemos automaticamente o fluxo respiratório, ainda que por poucos segundos, em uma tentativa regressiva de voltar ao ventre materno. Iyengar (1980: 184): “A taxa respiratória normal é de quinze inspirações e expirações por minuto. Esta taxa aumenta quando o corpo é perturbado por indigestão, febre, resfriado, tosse, ou emoções: medo, raiva. A taxa normal de respiração é de 21.600 inspiração e expirações a cada 24 horas. O yogue mede sua vida não pelo número de dias, mas de respirações. Como a capacidade respiratória é ampliada pelo pranayma, sua prática leva à longevidade.”

Voltando à constituição do método que cunhei de técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal, em um segundo momento propomos uma intervenção por intermédio do relaxamento. Para Pethö Sándor (1982: 05 e 10): “O relaxamento é um método de recondicionamento psico-fisiológico, abrange inúmeras técnicas… o relaxamento pode figurar, como terapia central, como procedimento paralelo a qualquer outra forma de terapia ou como coadjuvante, antes paliativo em casos da medicina clínica, especialmente na gerontologia. (…) A tensão vivida pelo homem moderno é decorrente de sua própria produção, portanto passível de modificação … assim tensão e distensão representam polaridades que se estendem desde a categoria biológica até a anímica-espiritual.”

Neste primeiro contato, o sujeito pode se abrir a uma nova experiência e a redimensionar o seu olhar para o ser e o estar no mundo. A escolha do relaxamento é importante por contribuir para esta “quebra” do estado anterior. Para Sándor (1982: 06): ‘O relaxamento ocupa posição de destaque, naturalmente, porque pela comutação dos processos fisiológicos, de suas autoregulações, ritmos, ‘memórias’, reagibilidades e coordenações, retroage sobre a afetividade, alterando de modo intenso, também as reações da personalidade. O resultado será, além do descanso, o ‘desatar’ interno, a introspecção e a reprodução construtiva das antigas vivências, atingindose, assim, novas coordenações e estruturações psicobiológicas.”

Sendo assim, o desatar interno propiciado pelo relaxamento e a introspecção que ele permite, aliadas às práticas de modelagem em argila, ao desenho e à pintura que permitirão a reprodução de antigas vivências que podem estar imperceptíveis, não permitindose novas coordenações ou novas estruturas psicobiológicas.

Retomando os procedimentos que constituem as técnicas expressivas, falaremos primeiro sobre a argila. Como procedimento metodológico para investigação do corpo, introduzimos a prática de modelagem em argila e, desta forma, trabalhamos a expressão mais especificamente das mãos. A utilização deste material faz com que uma nova linguagem possa emergir, provoca a precipitação de níveis inconscientes para o consciente e uma interação entre eles. Ao modelar o barro, as pessoas entram em contato com o material inconsciente da psique, transformando-os em produções que expressam suas vivências internas. As produções poderão refletir as imagens de experiências carregadas de afeto e que muitas vezes são impedidas de se expressar pela censura do ego. “O gesto que cria exerce uma ação contínua sobre a vida interior. A mão arranca o tato de sua passividade receptiva, ela o organiza para a experiência e para a ação. Ela ensina o homem a se apropriar da extensão, do peso, da densidade do corpo. Criando um universo original, deixa em todo ele a sua marca. Mede forças com a matéria, que transforma, e com a forma, que transfigura. Educadora do homem, ela o multiplica no espaço.” (Focillon, l983: 156)

A argila proporciona a vivência simultânea dos quatro elementos da natureza – ar, água, fogo, terra, possibilitando a criação, gestando vida, rompendo com a inércia, “… quando em certos pedaços de barro, ele consegue achar sombras vivas que se movem e tudo o mais que for necessário para simbolizar os seus medos profundo, o cotidiano de sua vida em comum com os restos dos mortais, quando encontra a criança escondida na angústia da adolescência e da idade adulta (…) e modela o que capta para além da aparência.” (Gouvea, l989: 56)

Ao modelar o barro, podem ser detectados os sofrimentos que marcam toda a vida inconsciente que necessita ser vivida. Ao tomar contato com o barro, o homem estabelece uma relação dialética, ele cria e ao mesmo tempo é criado. “Na relação dialética que acontece entre a matéria e o indivíduo, o momento criativo produzirá algo concreto que testemunhará o novo, o produto, a imagem concreta da emoção; a arte como testemunha do si mesmo.” (Gouveia, l989: 60).

É bíblico o fato do homem ser moldado a partir do barro (…Deus fez o homem à sua imagem e semelhança). Esta valorização do elemento terra traz à tona as questões ligadas ao feminino e aos mistérios da criação. Gouveia (l989: 58) afirma: ”Todas as suas riquezas internas do momento são arremessadas ao exterior e os signos do mundo interno, o desenho e a fenda que há no objeto criado, possuem tanto sentido quanto os sonhos que revelam sua alma. Assim, a água amolece a argila, que exposta ao ar e ao calor das mãos do analisando dá forma a algo de dentro dela mesma, e do analisando e no sol do barro a solidez perdida e partida da mente…”

Sendo assim, a escolha da argila como material para a prática das T.E.C.T.C.2 é importante, pois proporciona tanto uma experiência tátil quanto cinestésica, além de promover a manifestação ativa dos processos internos mais primários. Pessoas muito distanciadas do contato com seus sentimentos e que continuamente bloqueiam sua expressão, geralmente estão fora de contato com seus sentidos.

DEPOIMENTO DE UMA SESSÃO DE T.E.C.T.C – USO DE ARGILA

Nicole tem 55 anos, é de origem francesa, teve um câncer de mama em 1993, depois novamente em 1998 e atualmente está em tratamento com câncer no cérebro e na coluna, na região lombar. Nicole relata sua experiência de percepção do corpo que foi tecendo, mediada pela arte terapia. Nicole tem câncer pela terceira vez . Ela diz: “Eu preciso exprimir alguma coisa. Essas coisas saem através da argila. Batendo o barro, começo a perceber um volume, mais ou menos, então surge a forma espontaneamente do que vou modelar. Quando olho a seqüência percebo as coisas endurecidas: 1) Duas cabeças; 2) tumor na coluna; depois as peças estavam relaxadas e felizes, confiantes. Fico fazendo esculturas e durante o processo não sinto dor na coluna, é como se ao fazer escultura toda tensão do corpo é tirada. Realmente é uma descoberta para mim. Fico duas horas sem perceber o tempo.

Fazendo as peças não sinto ansiedade nem impaciência. Faço no meu ritmo. Cavar, reformar, sem pressa, sem ferramenta, meus dedos se transformam em ferramentas. Nunca pensei que pudesse tirar as imagens de mim. Fiquei três meses sem poder mexer a coluna. Foi difícil aceitar isso. Talvez por isso as minhas peças de argila têm movimento. Agora eu estou recuperando a capacidade de movimento, mas ainda não posso girar, ou abaixar, ajoelhar. Não posso deitar de barriga para baixo. Até hoje é impossível, pois tenho tumor na cabeça, fêmur, tumor lombar. Não posso fazer rotação. Abaixar para frente. Cada coisa que consigo fazer é um espaço que encontro para a liberdade.

Às vezes tenho lembrança do movimento natural. Movimento-me como antes, as dores vêm, não posso fazer movimentos instintivos, pois dói. Mas sinto a cada semana um progresso. Então, ao modelar mulher grávida sentia que precisava fazer uma mulher ajoelhada. Eu não vi como uma postura provocante, mas carinhosa, minha nora está grávida. Quando eu bati a argila, a última batida ficou com barro vertical. A primeira coisa que saiu foi a barriga. E o resto eu fui arrumando ao redor da barriga. As proporções estão bem melhores do que no início e eu consegui sem dificuldade. Ontem, por exemplo, eu consegui fazer proporção e o movimento músculo, articulação, sob o pé; o homem não é simétrico. Veja, temos um lado do corpo diferente, todo mundo tem diferença. As mulheres às vezes têm um seio maior que o outro, os olhos às vezes são mais abertos de um lado.

Depois, na escultura das duas cabeças eu quis expressar minha percepção da duplicidade. Durante muitos anos fui presa do passado, pensei que estava superando, mas na escultura a cabeça que representa o passado é ainda maior do que o presente. Acho que encontrei uma maneira de vomitar esse passado através das mãos.

(Neste momento o tempo vira, começa uma ventania com chuva e Nicole tem recordações): Nasci na beira do mar. O vento tem barulho, sinto cheiro quando vai ventar. Na minha família existe um peso que é passado dos antepassados para os descendentes. Meu irmão caçula está com problemas de fígado (a um passo do câncer). Ele é calado, fica o dia todo calado. Éramos amigos e confidentes, mas quando eu tive câncer de mama ele se afastou. Então ele é calado, guarda tudo dentro dele; ele engordou muito para conter a raiva. Eu falei para ele tomar um outro caminho para se libertar da raiva. Minha mãe é só sofrimento e ela transmite esse sofrimento o tempo todo, para os filhos e para os netos. Ninguém consegue estabelecer uma ligação serena com ela. Cada um que vai encontrá-la volta decepcionado, revoltado. A relação é só conflito. E ela faz questão de só dividir o sofrimento. Os netos, por exemplo, não agüentam mais. Eu sei agora que não estou mais presa. Já percebi nos últimos telefonemas. Ela não tem mais o poder de me segurar ao falar de coisas negativas. Estou fora disso. Percorri um longo caminho para me libertar do peso da minha sogra e agora também da minha mãe. Não sou mais uma refém.

Meu irmão é dez anos mais novo do que eu, ele é meu afilhado. Ele foi o oitavo filho de uma mãe. Meu pai tinha 58 anos quando ele nasceu. Eu fiquei muito orgulhosa de ser madrinha dele, tínhamos um bom relacionamento, depois que eu casei, nós o apoiávamos muito em sua vida, no seu trabalho. Mas quando fiquei com o primeiro câncer, ele sumiu da minha vida. Ele sempre precisava de nós, e na hora H ele fugiu. Para mim foi muito difícil entender e agüentar. Eu sarei. Voltei a encontrá-lo, mas sentia que ele ficava longe mentalmente.

Quando tive o segundo câncer ele não aparecia. Pouco a pouco ele voltou a nos visitar nos eventos: casamentos, aniversários. Ele decidiu vir me visitar, passamos 15 dias juntos. Foi muito bom, depois disso ele mudou radicalmente seu comportamento, minha filha foi visitá-lo e disse que ele mudou radicalmente o seu comportamento, agora ele deixa transparecer que ele está cheio. Então foi quando seu fígado mudou as enzimas, o que é um estado próximo ao câncer. Se ele não mantiver uma postura rígida, ele pode escapar. Lembro-me de que ao sarar do primeiro câncer, eu tive de enfrentar as pessoas que sumiram de minha vida e isso foi terrível.

Leloup (1998) diz que devemos fazer uma escuta espiritual, porque o espírito está presente em nosso corpo. As doenças, as crises podem ser manifestações do espírito que quer evoluir, mas o corpo, os membros simplesmente resistem a esse apelo. No evangelho de João, cap. 1, versículo 11, é falado: “Ele veio para o que era seu e os seus não o receberam!” Ou seja, a vida nos é dada, mas nem sempre é recebida. Existem partes do nosso corpo que se fecham para a vida. Às vezes uma doença, um acidente, uma provocação assinala que devemos mudar nossa maneira de ver as coisas. Mudar a nossa perspectiva de vida. Nicole ao resgatar sua história, com a doença, reescreveu outras possibilidades de atuação no mundo, transformando-se com essa possibilidade recebida com a doença.

MANDALAS: SÍMBOLO DO SELF

A proposta de pintar mandalas tem por objetivo trabalhar o universo interior. Ao pintar mandalas, a mente entra em um estado de relaxamento no qual as experiências traumáticas, os medos e as tensões podem ser transformados; seu efeito tranqüilizante concentra as energias. Por que mandalas?

As mandalas são figuras circulares, o que é muito presente em nossas vidas ainda que não a percebamos; muitas vezes, ao falar ao telefone ou ao participar de uma reunião, sem nos darmos conta, começamos a rabiscar uma forma circular. Na natureza temos várias mandalas: o girassol, a lua, o sol, um olho, uma estrela etc. Desta forma, pintar mandala possibilita nos aproximarmos do símbolo que contém tudo: os dois lados da polaridade – ele não exclui nada, tudo inclui. Os símbolos abrangem os paradoxos, por isto são mais verdadeiros, mas jamais poderão satisfazer o intelecto, pois ele vive para classificar e discernir. “O corpo é desconfiado e assustado e só gradualmente pode aprender a confiar em seus próprios instintos, disciplinando-os numa base sólida para o amadurecimento da psique. A menos que o corpo se sinta amado, que suas respostas sejam aceitas, a psique não tem o fundamento da certeza nos instintos, de que ela precisa; (…) a não ser que o corpo saiba que existem braços amorosos internos, suficientemente fortes para contê-lo, não importa quão feroz ou arruinado ele seja, num esforço para sobreviver agarrará sua própria rigidez. Esta rigidez repercute na rigidez da persona e do ego” (Woodman apud Macneely, 1994: 99).

CASO CLÍNICO

Relatarei agora o caso de uma senhora de 60 anos em processo de terapia. Alice nasceu de parto normal em casa, sua mãe não sabia, mas estava grávida de gêmeas. Ela nasceu forte, perfeita, mas sua irmã morreu ainda no ventre materno. Ao realizar sessões de T.E.C.T.C dentro de sua terapia, Alice sentiu seus braços se abrirem. Até então ela não havia percebido o seu corpo tenso, como se usasse uma armadura de ferro medieval que a impedia de modificar o movimento dos braços.

Depois de experimentar algumas sessões de calatonia, sentiu os braços se movimentarem lentamente, como se quisessem se abrir, modificando uma postura que era tão antiga… Quando de repente surgiu a imagem de um bebê recém-nascido no colo. Ela começou a se lembrar de sua mãe, de sua tia e de como durante toda a sua vida ela brincava ao dizer que estava cansada, pois teve de lutar muito para nascer. Ela sempre se sente culpada pelas coisas que acontecem à sua volta, com pessoas queridas, como amigos, filhos, sobrinha etc. O fato de ter experimentado a morte muito de perto e logo ao nascer talvez lhe tenha dado a sensação de vitória/derrota simultaneamente. Trabalhamos com a imagem do bebê e Alice quis representar sua vida intra-uterina.

Alice é uma pessoa especial. Casou-se, teve um bebê que morreu logo após o nascimento. Em seguida, adotou um menino e, posteriormente, uma menina que veio a falecer. Trabalha em uma comunidade que atende crianças carentes. Como uma pessoa inteligente e sensível, Alice fez de sua vida um exemplo de amor ao próximo, de solidariedade, não se fixou nas experiências dolorosas de sua vida. Mas, no entanto, a dor e o sofrimento ficaram registrados em seu corpo e a tensão vivida estava ainda aprisionada nele. As tensões que carregamos em nosso corpo podem ser libertadas de diferentes maneiras. Algumas vezes as tensões podem ser dissolvidas catarticamente, ou a descarga que pode ocorrer por tiques, tremores, tosse, gaguice, choro e outras manifestações.

Sustentar tensão muscular é um processo desgastante para o nosso organismo porque consome grande quantidade de energia. Mas, infelizmente, a tensão física em que vivemos nem sempre é claramente percebida, por isso os nós que temos no corpo são inconscientes. Os nossos traumas são de diferentes origens, sendo muitas vezes originados por fatores externos como críticas destrutivas, ridicularizações, ou mesmo trauma de omissão, quando experimentamos a sensação de abandono na fase de recém-nascido ou mesmo na infância de um modo geral. Quando as necessidades básicas não são atendidas, deixam marcas graves com sérias conseqüências no futuro do ser humano. Atender a essas necessidades básicas nem sempre é uma tarefa fácil, pois requer uma total atenção por parte dos pais ou do cuidador, pois elas são primitivas, referem-se à satisfação dos instintos, envolvendo, além da alimentação, o sono, a necessidade de ser segurado, acariciado, confortado, encorajado através de brincadeiras e, principalmente, ser o “centro da atenção humana”, para ter garantido o sentido de existir e um desenvolvimento saudável. Práticas que promovem um contato físico nutridor podem ser uma forma competente de curar os traumas dessa ordem. As terapias não-verbais, como arte terapia, terapia corporal ou as técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal, podem ajudar muito no tratamento de importantes desordens emocionais e psicossomáticas, principalmente aqueles que envolvem bloqueios de energia, emocional e física, requerendo uma abordagem vivencial.

Depois de ter vivido a experiência de relaxamento, Alice fez um desenho que retrata sua sensação experimentada na vida intrauterina. A imagem pode ser um canal expressivo bem importante, pois quando se trata de traumas ou experiências vividos em épocas em que não havia a linguagem (recém-nascidos, trauma de infância), somente comunicação não-verbal parece ser eficiente.

Segundo Grof (2000), psiquiatra tcheco, para a neurociência ocidental, a consciência é um produto dos processos fisiológicos no cérebro e, assim, depende decisivamente do corpo. Pouquíssimas pessoas, inclusive os próprios cientistas, percebem que não temos absolutamente qualquer prova de que a consciência seja realmente produzida pelo cérebro e que não temos a mais remota noção de como algo assim poderia acontecer. Apesar disso, essa suposição metafísica básica permanece sendo um dos principais mitos que orientam a ciência materialista ocidental e tem uma profunda influência sobre toda a nossa sociedade.

A suposição de que a criança não está consciente no estresse emocional e físico que envolve o nascimento, não deixando qualquer registro em seu cérebro, contradiz as observações clínicas, o bom senso e a lógica elementar.

A negação da possibilidade da memória do nascimento, baseada no fato de que o córtex do recém-nascido não está totalmente mielinizado, é particularmente absurdo quando consideramos que a capacidade de memória existe em muitas formas de vida superior que nem têm córtex.

Grof (2000) diz que determinadas formas primitivas de memória protoplasmática existem em organismos unicelulares. O parto biológico é o trauma mais profundo de nossas vidas. Ele fica gravado em nossa memória em seus mínimos detalhes até no nível celular e tem um efeito profundo sobre o nosso desenvolvimento psicológico. Grof (2000) descobriu, acompanhando milhares de pessoas ao longo dos anos em estados ampliados de consciência, que a vivência no útero materno e ao longo do processo de nascimento gera marcas profundas na mente humana, ao que Rank já havia chamado de trauma de nascimento. Há, ao longo do processo de desenvolvimento da vida intra-uterina e do nascimento, quatro momentos de experiências bem distintas, aos quais ele chamou de matrizes perinatais, uma vez que elas se tornam, de fato, matrizes de comportamento, formas de compreensão da vida, das relações humanas e de si mesmo.

Na matriz I a experiência primordial é de se estar num lugar onde não há limites, barreiras, oposição ou qualquer experiência negativa, como quando se pensa numa gravidez sem problemas emocionais ou bioquímicos da mãe. Permanece um bem estar paradisíaco. Quando as contrações do parto iniciam, esta experiência do lugar, da matriz I, cede lugar para a matriz II onde há pressão mecânica sobre o feto e a conseqüente diminuição de oxigênio pela compressão sobre o cordão umbilical. Isto produz sofrimento mecânico, sensação de confinamento sem saída e medo, pois ele não sabe que há uma saída. O instinto de sobrevivência faz com que a atitude passiva da matriz II mude para uma luta ativa, pela vida, e entramos na matriz III, onde prevalece a raiva, um movimento de expansão do corpo, de agressão.

Após o nascimento, há um relaxamento, entramos na matriz IV, onde prevalece novamente um sentimento positivo de tranqüilidade. Tudo isto é vivido com muita intensidade como experiências físicas e emocionais. Quando a pessoa pode reviver essas experiências num estado ampliado de consciência, num ambiente protegido, isto pode ser muito curativo, pois a carga emocional ligada às matrizes perinatais é imensa. Pessoas que antes eram agressivas e irritadiças passam a ter mais equilíbrio nos relacionamento interpessoais. Experiências de timidez, claustrofobia, síndromes de pânico podem ser ultrapassados ao reviver e expressar as fortes emoções da matriz II. Lembrando que, de acordo com a noção de coex, enquanto não for esgotada toda emoção ligada a algum sintoma, estegeralmente permanece, embora com menor freqüência e intensidade. Coex significa condensação de experiências, onde as memórias se agrupam no inconsciente por uma semelhança temática e não por uma ordem temporal. Ao tocarmos em um conteúdo do inconsciente, muitas vezes surgem outros conteúdos de fases diferentes de vida que estão ligados por semelhança. Ou seja, enquanto não esgotarmos a coex, permanecerá uma raiz do sintoma do que se quer tratar. Outro aspecto que considero importante na contribuição de Grof (2000) é o quanto ficamos fixados em uma das quatro matrizes perinatais e vivemos a vida a partir disto. A atitude mais tímida, medrosa, diante da vida, e reflete a fixação na matriz II; a atitude mais agressiva, à fixação na matriz III e assim por diante.

Alice, ao descrever sua experiência com o relaxamento (calatonia) e desenhar a mandala , pôde rever e reorganizar sua experiência dessa fase da vida, resgatando essa memória tão antiga. Essas memórias podem ajudar na compreensão de dinamismos psíquicos, na autodefinição de nossas atitudes em relação ao mundo, que podem ter sido contaminadas por lembranças deste momento de vulnerabilidade, inadequação, pois podemos nascer anatomicamente, mas emocionalmente não nos damos conta desse fato. O nascimento é uma doença da qual nunca nos curamos, pois o parto finaliza brutalmente a existência intra-uterina. Morremos como organismo aquático e nascemos como uma forma de vida fisiológica e anatomicamente diferente, que respira ar.

Como feto estamos totalmente confinados durante o processo de nascimento e não temos como expressar nossas fortes emoções e nem como reagir às intensas reações físicas aí envolvidas. A memória desse evento permanece sem  ser digerida e assimilada psicologicamente.

Claro que, posteriormente, outras experiências em nossas vidas vão nos moldando de modo a não nos fixarmos nos  aspectos difíceis, como Alice mesma o fez, mas é importante pensar que ainda assim, nos recônditos da memória há  registros destas experiências.

A prática de relaxamento, de meditação, de respiração e outros recursos, que possibilitem a ampliação da consciência, podem levar a um desenvolvimento maior. Caso contrário, ficamos vivendo apenas no limite da nossa  pele. Allan Watts (apud Grof, 2000, p.50) chama essa experiência limitante de ego encapsulado na pele, ou seja, ter  uma percepção restrita apenas à fisiologia dos nossos órgãos dos sentidos e as características físicas do ambiente.

 


Bibliografia
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