Velhice e Metanoia Uma análise do filme Hanami: Cerejeiras em Flor

Velhice e Metanoia Uma análise do filme Hanami: Cerejeiras em Flor

Velhice e Metanoia Uma análise do filme Hanami: Cerejeiras em Flor

Atualmente, a Psicologia é desafiada a incursionar pelos diversos campos do conhecimento, fazendo aproximações e criando interfaces com outras áreas, pois acredita que o comportamento humano possui múltiplas facetas e manifestações possíveis.

A partir dessa ideia, a Psicologia Junguiana, através do seu precursor Carl Gustav Jung (1875-1961), convida-nos a entender o desenvolvimento psicólogico e os fenômenos humanos, realizando muitas vezes paralelos com esses diversos campos do conhecimento.

Jung compreendeu profundamente a psique humana ao elaborar, por meio de uma observação precisa, empírica, fenomenológica, toda a sua teoria. Um dos seus principais conceitos foi o de individuação.

Diferentemente de individualismo cujo excesso leva a um certo grau de isolamento, entende-se por individuação o fato de um indivíduo ser passível de um sentido. Para ele, todo o ser humano se tornará aquilo que é na sua essência, inteiro, por meio do contato mais profundo consigo mesmo (Jung, 2002). Postula o teórico:

O conceito de individuação desempenha papel não pequeno em nossa psicologia. A individuação […] é um processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do individuo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. É uma necessidade natural […] (Jung, 2002, p. 426).

Acredita-se que a maior virtude dessa concepção seja a de colocar o individuo sempre em conexão com o sentido maior de sua existência, ainda mais e principalmente quando este esteja se afastando dessa busca maior, como se pode perceber na trajetória da protagonista Trudi Angermeier, do filme aqui analisado e tal acarretaria, em seu processo psíquico, manifestações de material inconsciente.

À luz da psicologia jungueana, a concepção de ciclos vitais do desenvolvimento se faz presente, entendendo-se que o processo de individuação seria o fio condutor para essas fases da vida humana.

Por isso, para Jung (2002a, 2002b; 2005; 2010), sua psicologia estaria mais contemplada na vida adulta, e o auge maior dessas etapas estaria justamente no final da vida adulta e início da maturidade.

De modo “ideal”, na primeira metade da vida incluem-se: a separação da mãe e o desenvolvimento do ego, o abandono da infância e a aquisição da identidade adulta. Em geral, tais realizações sugerem a consolidação de uma posição social, relacionamento ou casamento, paternidade e atividade profissional, questões mais ligadas ao “eu”, à inserção e adaptação social.

Por outro lado, na segunda metade da vida, a tônica se descola da dimensão externa para um contato maior com o mundo interno. As conquistas e realizações concretas ficam em segundo plano e uma busca maior, mais interiorizada, faz-se necessária: a sensação de finitude é sentida, preocupações com o sentido da vida, e a espiritualidade tornam-se reais. É aqui que se dá a crise da metade da vida; é nesta passagem que o homem se vê flertando com o horizonte.

Metanoia: o desenvolvimento humano na segunda metade da vida

Carl Gustav Jung, o psiquiatra e psicoterapeuta suíço em que se funda este estudo, é quem define a segunda metade da vida como metanoia: uma fase em que experimentamos a consciência de nós mesmos como parte de algo mais amplo.

Jung (2002) afirma, reiteradamente, em sua obra que, na metanoia (conceito que não tem conotação rigidamente cronológica, antes depende do processo de desenvolvimento individual), o ser humano é obrigado a se confrontar com o fato de que o avançar da idade não pode ser tomado como mero apêndice da juventude, e que o declínio físico não significa o afastamento de sua alma, mas justamente o contrário: a possibilidade de realização do si-mesmo, ou seja, ser quem ele é propriamente, incluindo-se na personalidade conteúdos, até então, inconscientes, devido à unilateralidade do ego jovem.

A esta tarefa, Jung (2002) dá o nome de processo de individuação, uma espécie de “movimento de vida” que proporciona a possibilidade de um encontro com a criatividade e a espiritualização.

Metanoia é termo grego que indica a transformação da própria identidade pessoal, depois de uma experiência que transforma os valores até então adotados por um indivíduo.

Jung (2002) retoma o termo para indicar o fenômeno de crise psicológica, através do qual sucede a inversão radical de todos os valores sobre os quais está ordinariamente fundamentada a existência de um homem. A ilustração clássica da metanoia dá-se por ocasião da análise do limiar que liga e distingue a primeira e a segunda metade da vida: nessa fase de passagem pôr-se-iam, na sombra, todos os valores sobre os quais o indivíduo está fundamentado, e contemporaneamente pôr-se-iam, em luz, outros valores que estão em oposição.

Enquanto na infância e na juventude é o mundo exterior que nos chama, na meia-idade e nos anos maduros acontece o contrário: o ambiente exterior cede lugar ao interior.

Desta ligação entre os níveis superiores do psiquismo é que o ser humano pode desenvolver um crescimento equilibrado, de forma a expandir a sua consciência. É uma esfera que se amplia constantemente, muito mais que uma linha reta.

Esta forma de expansão não linear, ou expansão da consciência, pressupõe um aumento das atividades de superação do egocentrismo ou das atitudes separatistas que nos afastam dos demais, potencializando-nos criatividades que possibilitam a expressão de todos os recursos que constituem a nossa totalidade.

Esta mudança de foco pode se tornar uma verdadeira revolução, quando a espiritualidade pode ser direcionada de forma inconsciente. A espiritualidade ou o chamado à espiritualidade pode ser uma forma de um continuum do desenvolvimento, em que o questionamento “Quem sou eu realmente?”, busca a resposta internamente.

Apesar dos fatores externos da existência não serem negados, estes mudam de ênfase, não sendo priorizados.

A espiritualidade na meia-idade flui de uma nova atitude e orientação. A mudança de vida na meia-idade é uma mudança revolucionária.

Quando se entra na meia-idade o Self torna-se central, substituindo a importância do ego. Um novo ponto de vista e nova atitude afloram na pessoa, acompanhados por novos valores.

A mesma devoção e atenção dadas na primeira etapa do desenvolvimento humano devem agora ser direcionadas, exigindo, assim, similar atenção. A pessoa na meia-idade deve entregar-se a si mesma para poder remodelar-se.

É preciso ser moldado pela sua própria história (passado), pelo seu mundo interior, pelas suas experiências e realidades únicas (presente), bem como pelo discernimento do Espírito, que nos guia através de novos vales e montanhas (futuro).

Sob esta perspectiva, o ser humano está em constante processo de crescimento pessoal, realizando seu potencial não manifesto, conforme explicitam as séries a seguir:

Este processo de desenvolvimento presente na meia-idade pode durar três ou quatro décadas da vida. É uma retomada da própria história, é um chamado para integrar os aspectos que foram negligenciados até então, quando o passado pode ser externado, e reconfigurado. A este processo de reconstrução e integração interior, Jung denominou como Individuação, presente como desenvolvimento próprio da segunda metade da vida.

Jung (2002) aponta o caminho da individuação como possibilidade de crescimento e desenvolvimento durante toda a nossa existência. Principalmente na segunda metade da vida, ou seja, depois de termos construído uma base sólida, uma família, uma profissão, a realização da jornada interior, a integração dos aspectos femininos (anima ) e masculinos (animus) da nossa personalidade para que, enfim, possamos descobrir e viver o amor verdadeiro.

O corpo físico pode perder suas formas joviais e, ao extenuar suas forças, potencializa o encontro com a finitude, ainda desconhecida, não aceita.

Jung considerava que homens e mulheres na meia-idade sofrem um processo de individuação no qual expressam aspectos da personalidade até então negligenciados.

Algumas questões podem ser fundamentais na meia-idade, como abrir mão da imagem da juventude e entrar em contato com a finitude.

Considerar a vida como um processo ininterrupto, no qual estamos em constante desenvolvimento, é fundamental. Envelhecer pode ser perigoso quando, na segunda metade da vida, carregamos o passado como um imenso fardo – frustrações, experiências não vividas, desejo do amor pleno, enfrentamento dos ressentimentos, das mágoas e tantos outros sentimentos controversos e amargos.

A afetividade na velhice

A vida de uma pessoa não é o que lhe aconteceu, mas o que ela recorda e como o recorda¹
(Gabriel Garcia Marquez, 1995)
¹Escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Prémio Nobel da Literatura em 1982.

Recordar, tal qual o indicia o grande literato em epígrafe, implica emoção, esta que é uma das condições humanas mais mobilizadoras, dado que norteia as relações interpessoais, possibilitando ou impedindo a interlocução saudável com o mundo.

Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão do século XIX, assim como Jung, considerava a emoção, a afetividade, como uma função psíquica distinta e autônoma, norteadora de toda a ação humana. O ser humano faz sempre apenas o que quer e o faz necessariamente; isto se deve ao fato de ele já ser o que ele quer, pois daquilo que ele é segue-se necessariamente tudo o que faz a cada instante. Mesmo admitindo que muitas decisões da vontade sejam intermediadas ou ponderadas pelo intelecto, não devemos nos esquecer de que todo o elo de uma cadeia de ideias tem determinado valor sentimental, que é a única coisa essencial para chegar à decisão da vontade, e ainda que este valor sentimental, como fenômeno parcial, esteja subjacente às mudanças do todo o intelecto e relativamente preservado, deveria ser procurado no campo do sentimento.

Um dos grandes desafios da velhice é a perda do “Sentido de Ser” que ocorre por fatores sociais, culturais ou familiares que contribuem para que o indivíduo perca sua fluidez, sua mutabilidade, sua liberdade. Viver um apropriado intercâmbio de afetividade implica em resgatar o modo próprio e singular de ser no mundo, habitar o mundo de forma prazerosa e confortável.

A afetividade, no âmbito da constituição psíquica, é descrita como estrutura elementar presente desde o nascimento do indivíduo, que preside o pensamento e a ação, o intelecto e a vontade. Desenvolver a afetividade em grupos de idosos pode possibilitar uma ampliação do olhar frente ao mundo e também uma escuta diferenciada, permitindo que novos significados possam ser atribuídos a velhas situações, proporcionando a compreensão da noção do todo e de sua complexidade, em detrimento à tendência de isolar os fatos, restringindo, assim, as experiências vividas.

Nesse sentido, o idoso pode seguir em busca de sua identidade, apoiado em seu mundo interno. Jung (2002) observou que a anima pode ser considerada em ação sempre presente quando emoções e afetos estão agindo no homem e que ela intensifica, exagera, falsifica e mitologiza todos os relacionamentos emocionais, tanto no trabalho como na relação com outras pessoas, e isso ocorre em ambos os sexos.

No fenômeno afetivo, estaria inerente a possibilidade de uma transformação no nível de adaptação ao mundo, alcançado pelo indivíduo, ou mesmo de uma melhora na relação com o mundo. O afeto é considerado uma das formas que mais facilita o acesso do inconsciente ao consciente.

Poderíamos considerar que uma das tarefas dos grupos de idosos seria estabelecer uma missão de procurar uma objetivação dos afetos, a fim de confrontá-los com a consciência.

Dado que entre afeto e consciência subsiste uma circularidade iniludível, Jung convida a considerar as possibilidades que podem surgir em nível psicoterapêutico, exatamente na presença dessas manifestações:

Uma vez que momentos de afeto mostram-se involuntariamente as verdades do outro lado, é aconselhável aproveitar esses momentos para que tal aspecto tenha a ocasião de expressar-se. Por isso, o indivíduo deveria cultivar a arte de falar consigo mesmo numa situação de afeto e, em seus marcos, como se o próprio afeto falasse, sem levar em conta a crítica razoável. Enquanto o afeto, como crítica da consciência, fala à própria consciência, esta [esclarece Jung], deverá evitar criticá-lo; ao contrário, no fim, ela deverá também submeter a crítica à própria crítica que lhe foi dirigida o afeto.

Qual a fórmula mágica capaz de devolver ao homem que envelhece o seu “Estar no Mundo” de forma confortável, garantindo um bom intercâmbio em suas relações interpessoais?

Talvez a resposta seja: desenvolvendo o mundo interno com amorosidade. Eros precisa do esclarecimento de uma consciência evoluída, a fim de atingir sua meta específica que é a consciência. Em última análise, o Eros é um grande mistério, pois a consciência só pode ser alcançada pelo amor. Jamais os valores da alma se realizam mediante a repressão dos sentidos, porque, com frequência, atinge-se o espírito através dos sentidos e, algumas vezes, através do desenvolvimento espiritual.

Procurando evitar o conflito dos opostos (aspectos racionais e emocionais) do ser pela negação de um lado da vida (o afetivo) prejudica-se o espírito, privando-o da plenitude e inteireza.

A magia pode estar na capacidade de saber o que está sentindo e, mais que isto, a capacidade de expressá-la no relacionamento.

É neste momento que o indivíduo é convidado a retomar sua história pessoal, mergulhar dentro de si, deparar-se com seus feitos e conquistas e, também, com aspectos que foram deixados para trás, que agora são cobrados na segunda metade da vida.

A história

Hanami: Cerejeiras em Flor, uma produção alemã (2008), dirigida por Doris Dorrier, é um trabalho sensível em sua concepção e pesquisa. À primeira vista, pode soar estranha a premissa de um filme alemão que aborda em sua essência a cultura japonesa. Contudo,, bastam alguns minutos de Hanami para entender o motivo da escolha da terra do sol nascente como pano de fundo para uma trama sensível e rica em simbolismos.

Rudi Angermeier (Elmar Wepper) e Trudi Angermeier (Hanellore Elsner) formam um casal de idosos com uma vida rotineira e tranquila, residentes em uma cidadezinha do interior da Alemanha. Possuem três filhos e dois netos, sendo que dois deles moram em Berlim e o mais velho em Tóquio, no Japão.

Trudi, uma mulher sonhadora e amorosa, tem o desejo de viajar ao Japão para matar as saudades do filho “querido” que se aventurou numa vida profissonal num país distante. Contudo, ao receber a notícia de que seu marido está com uma doença terminal que lhe dá poucos meses de vida, os médicos aconselham Trudi a ter cuidado ao lhe contar sobre a enfermidade e sugerem que o casal aproveite os últimos momentos para viajar ou realizar alguns de seus sonhos.

O marido sempre muito sistemático, seguro na sua vida pacata, mantém uma rotina entre trabalho e casa. Sem dar muita atenção às vontades de Trudi, ignorando o desejo de a esposa visitar o filho, ele “deixa” para depois (“há tempo”), pois na sua percepção a ideia de finitude ainda não se tornou presente, pelo menos naquele momento.

Por outro lado, para Trudi, a partir da descoberta da doença do marido, “uma emergência” de vida se faz necessária; na verdade, ela sabe que não há tempo.

A questão da temporalidade está presente, levando Trudi a uma tentativa de mobilizar o marido a sair daquela repetição cotidiana.

Diante da terrível notícia, Trudi, sentindo-se angustiada e solitária, e decidindo não contar ao marido sobre a doença, convence-o, por fim, a saírem do interior da Alemanha e irem a Berlim ver os filhos e netos que há muito não encontram.

A tentativa de aproximação dos entes queridos pode ser entendida pela necessidade de uma memorização afetiva, fundamental para aquele difícil momento. O anúncio da possível visita acarreta estranheza e apreensão nos filhos. Aqui, inicia-se uma etapa crucial para tudo o que será vivido, em especial, a complexa ideia de “finitude” – um novo e delicado elemento na vida do casal.

Dentro desse contexto, ocorre um movimento “para a vida”, pois a perpcepção de tempo, a de se ter “poucos meses”, leva Trudi a provocar o marido a sair daquela situação aparentemente confortável, a aproximar-se dos filhos, e a conhecer um mundo um tanto distante daquele vivido no interior da Alemanha.

No percurso a Berlim, Trudi observa uma mosca colada na janela do trem; esse “pequeno elemento” será uma marca que irá acompanhá-los nos momentos de transição das fases e etapas dessa família; quer dizer, a “Efêmera”, como será chamada a mosca, aparecerá nos encontros com os membros da família e será o símbolo das transições e aproximações entre eles.

Nesse sentido, o trem, como diria Marie-Louise Von Franz (2000), psicoterapeuta analítica, pesquisadora e escritora, é “[…] algo que me leva e me dá a impressão de movimento, porém o que só é perceptível quando se faz olhar pela janela”, traz o sentido de ligação entre o entusiasmo e a ansiedade da novidade, repleto de insegurança e medo do novo que se anuncia.

O envelhecimento, aqui, pode ser vivido com reflexão e dignidade, uma vez que se constata a difícil expressão da finitude. Diante disso, o ser humano tende a se tornar mais frágil na sua estrutura corpórea e essas limitações físicas deixam-no também mais carente do outro; porém a percepção tardia desse processo gera uma sensação de incompletude, de vazio, e de dor, pelo lado forçosamente abandonado.

A perspectiva da morte, do morrer, a perda iminente de um ente amado, “leva a um rompimento do equilíbrio” até então vivido. “São crises marcadas por confusões, incertezas e instabilidade, na busca de um novo equilíbrio funcional” (Reis, 1993, p. 68).

A relação entre Rudi e Trudi se faz dentro de um campo sútil, complexo, único do casal, mas que, muitas vezes, carrega a indiferença com relação ao tempo, a perspectiva em relação à vida e aos outros.

Von Franz argumenta a esse respeito que:

O processo de individuação […] é a condição sine qua non do verdadeiro comportamento social, porque se a individuação não for completamente realizada, ela acontece espontaneamente de forma negativa, isto é, nós nos tornamos mais duros com relação aos nossos semelhantes. Os relacionamentos humanos são condição indispensável para a realização consciente da unidade interior, porque, sem o reconhecimento consciente e a aceitação da nossa afinidade com aqueles que nos cercam, não pode haver uma síntese da personalidade
(von Franz, 2000, pp. 319-320).

Sozinhos e vivendo uma dinâmica e um ritmo de vida próprio, o casal chega a Berlim. Lá, eles veem o quanto estavam distantes da realidade dos filhos.

Nesse momento, percebemos uma lacuna familiar, afetiva e marasmática, estranhamentos constantes entre pais e filhos. A filha mais nova, Karolin (Birgit Minichmayr), uma jovem dura e inflexível, mantém um relacionamento homoafetivo com uma moça bonita, sensível e amável. Esta realidade causa enorme perplexidade em Rudi e Trudi que não esperavam esse tipo de união, principalmente em família.

O outro filho, Klaus Angermeier, vive uma espécie de vida pós-moderna com a esposa e filhos, uma rotina repleta de “equipamentos domésticos”, facilitadores do trabalho do dia a dia que contribuem para o distanciamento afetivo, marcam a forma de se relacionar, e se interpõe a condição do acolhimento e afeto, dificultando a aproximação desses pais considerados “velhos”.

Essa lacuna afetiva entre pais (Trudi e Rudi), filhos e netos, traz certo constrangimento e deixa dúvidas sobre o sentimento de união entre eles. As relações se fazem apenas pela consanguinidade, deixando certo incômodo e estranheza, tendo em vista o tempo que estiveram distantes, mergulhados cada um no seu próprio mundo e projetos pessoais.

Mobilizada por tantas diferenças e distanciamentos, Trudi propõe ao marido um passeio pela praia, coisa que há muito tempo não faziam, tudo numa tentativa de fugir daquele desconforto inesperado com a vida vivida pelos filhos.

Como num sonho, certo dia, Trudi vai com a namorada da filha a uma apresentação de Butoh, um tipo de dança japonesa que a sensibiliza muito. Ao ver e sentir os movimentos, Trudi se vê “tocada”, encantada pela profunda sutileza dos gestos e sons evocados pela exibição.

Nas profundezas da arte, a dança mobiliza aspectos inconscientes pertinentes à vida e, assim, tudo se move, tudo se desloca, mesmo estando tudo parado fisicamente.

Comentando a possibilidades trazidas pelas práticas artísticas, Arcuri (2006) afirma que:

A arte pode ser uma força capaz de levar o homem para além do “vazio”. É uma linguagem capaz de estabelecer uma conexão com a alma, sendo capaz de compreendê-la. Assim, desenvolve a liberdade à alma aprisionada pelo vazio, pelo medo, ou ainda pelos sentimentos que não conseguem ser nomeados (Arcuri, 2006, p. 158).

Não se sabe se, por ironia ou cilada do destino, esse reencontro com os filhos soa como uma despedida: a vida ou, talvez, a morte iminente acaba surpreendendo na intenção. A seguir, Rudi, tão próximo do seu final de vida, teve, porém, sua “vez” roubada, já que é Trudi quem, subitamente, se vai. Como continuar a trilhar os dias e as noites sem a amada companheira e mulher?

O homem, vivendo uma crise de corpo, alma, e espírito, encontra na morte possibilidades de tranformação e mudança. Num percurso doloroso, de luto, ele viverá inquietações, movimentos necessários, mas, sobretudo, terá disposição e energia psíquica para ampliação da sua consciência.

No Livro Vermelho, em seu “reencontro da alma”, Jung, confessa:

Minha alma, onde estás? Tú me escutas? Eu falo e clamo a ti – estás aqui? Eu voltei, estou novamente aqui – eu sacudi de meus pés o pó de todos os países e vim a ti, estou contigo; após muitos anos de longa peregrinação voltei novamente a ti. Devo contar-te tudo o que vi, vivenciei, absorvi em mim? Ou não queres ouvir nada de todo aquele turbilhão da vida e do mundo? Mas uma coisa precisas saber: uma coisa eu aprendi: que agente deve viver esta vida (Jung, 2010, p. 232).

O casamento como relacionamento psíquico

A partir daí, Rudi começa uma jornada para compreensão do matrimônio como relacionamento psíquico. Para Jung (2002, p. 195), “[…] não existe nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos se ambos se encontrarem em estado inconsciente”.

A partir da morte de Trudi, Rudi dá início ao verdadeiro encontro em direção a sua alma quando passa a assumir os desejos de Trudi como seus, e passa a enxergar o mundo através dos olhos de sua esposa que, durante toda a vida, tentou lhe apresentar a música, a arte, e o lado poético da vida.

Aqui, como se arrancada uma parte do seu corpo, a existência desse homem fala através do amor pela vida com a qual a esposa sonhava. Numa melancólica elaboração da perda, da própria ausência física da mulher amada, Rudi decide viajar pelos sonhos de Trudi. Na tentativa concreta de reencontrar o amor, ele segue rumo à Tóquio, cidade onde mora o filho Karl (Maximilian Brückner), em busca de si mesmo, da contraparte projetada em Trudi.

O psicólogo James Hollis lembra uma canção muito popular na sua infância, intitulada “Este é o momento”, uma homenagem a todos aqueles que, ao longo da vida, buscam o amor, a referência da própria existência:

Logo estarás navegando
Longe mar adentro,
Enquanto estiveres distante,
Lembra-te de mim, por favor.
Quando voltares,
Estarei te esperando.
(Hollis, 2002, p. 10)

A harmonia do casamento, própria da primeira metade da vida, funda-se, sobretudo, em projeções, “[…] cada homem sempre carregou dentro de si a imagem da mulher; não é a imagem desta determinada mulher, mas a imagem de uma determinada mulher” (Jung, 2002, p. 203).

Como acontece em toda a separação conjugal, seja por divórcio ou morte, cada cônjuge é obrigado a acolher os conteúdos vividos pelo outro.

Assim, na ausência do receptáculo da projeção desses conteúdos, há a necessidade de integração e um convite à transformação.

Assimilação. É a aproximação de um novo conteúdo da consciência de um material subjetivo que está à disposição, em que é ressaltada sobremodo a semelhança do novo conteúdo com o material subjetivo disponível […] Assimilação é basicamente um processo de apercepção (Jung, 1991, p. 394).

Nessa dança de sombras, onde o Eu e o Tu se mesclam e se perdem, muitas vezes fusionados, observamos que é a partir da ruptura, seja pela traição, morte, ou metanoia familiar (entendendo-se, aqui, como as transformações brutais sofrida pela família, por exemplo, quando os filhos saem de casa), que a chance de transformação se dá pelo aprofundamento na dor da perda e seu respectivo significado:

[…] A perda se tornou o catalisador para que ele reexaminasse a própria vida. Para compreender a profundidade dessa experiência, é preciso que o indivíduo perceba que sua maior perda fora a perda da sua própria integridade psíquica, e que a dor não era tanto pela morte da esposa, e sim pela perda da alma (Hollis, 1998, p. 53).

A vida de pais e filhos é marcada por separações necessárias, perdas e ganhos possíveis, regidos para o desenvolvimento psíquico, para uma nova etapa do ciclo da vida a ser cumprida, por cada um dos atores daquela cena familiar.

Aqui se somam aproximações, lembranças; e, preocupações futuras se apresentam. Na caminhada pela praia, na dor silenciosa partilhada, um clima nostálgico se instala, ali os três irmãos se reencontram, se reaproximam e se diferenciam em sua própria natureza dentro do drama familiar e das condições que a vida propõe, verbalizam diferenças e também as remotas memórias.

Cada um é obrigado a se perceber como um ser único, um convite à reflexão do que moldou a cultura daquela família.

A vida de Rudi, em sua frágil trajetória, obriga-o a enfrentar o inesperado, o que a vida duramente lhe oferece: um olhar provocativo, um complexo rememorar de “um tudo” não realizado.

Como se numa concretização da projeção, Rudi encontra no desejo da esposa, a sua busca maior, a sua elaboração e percepção da solidão da vida, a possibilidade da coniuncio² (entendendo-se aqui este conceito como o casamento interior, quando Rudi vivencia os valores e desejos de Trudi como seus).

²Termo alquímico, um arquétipo do funcionamento psíquico, que, segundo Jung, significa conjunção e, psicologicamente, a união de opostos. Casamento místico para o nascimento de um novo… Disponível em: http://paulorogeriodamotta.com.br/coniunctio-dicionario-junguiano/ Acesso em 02 julho, 2015.

A velhice

A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu, e ela não perde o que merece ser salvo
(Galeano, 2011, p. 10).

Na busca de sua alma através das emoções de Trudi, de sua memória, o próprio Rudi se depara com a velhice e a finitude. Viver até os 80 ou 90 anos tem um grande significado para todos nós. Ao designar de metanoia a segunda fase da vida, significamos o termo na perspectiva da evolução e do crescimento; assim é que se vê no filme que, ao se deparar com a solidão, e o vazio deixado pela morte da esposa, Rudi percebe que sua vida, até então, não tivera sentido. Era uma existência “acoplada” a de Trudi, em um cotidiano repetitivo, uma rotina que lhes garantia segurança, mas não lhes trazia o real significado da vida.

Jung chama o momento de retomada da consciência de metanoia, como algo que transcende o ego; metanoia, um termo grego que significa conversão, indica transformação quando novos valores podem ser adotados. Assim, Rudi é “arrancado” de sua posição, de sua rotina, do seu cotidiano, e é quando valores anteriores perdem completamente o significado.

Jung faz uma ilustração clássica da metanoia, mostrando o que liga e o que a distingue da segunda metade da vida. É como se o foco mudasse e uma reorientação ocorresse.

O homem normal é apenas uma ficção ainda que existam certas regularidades válidas para quase todos. A vida psíquica é um desenvolvimento que pode estacionar nas etapas iniciais da vida […].
É como se cada indivíduo tivesse um peso específico próprio, e de acordo com ele subisse ou descesse, até encontrar o ponto de equilíbrio onde encontrasse seu limite. Nenhuma pessoa inteligente será por isso levada a ocultar segredos, pois sabe perfeitamente que o segredo do desenvolvimento psíquico jamais pode ser traído, simplesmente porque o desenvolvimento depende da capacidade de cada um em suportar as mudanças e desafios apreendidos (Jung, 2002, pp. 205-206)

Jung afirmava que homens e mulheres na meia-idade sofrem com o processo de individuação, no qual expressam aspectos da personalidade até então negligenciados.

Algumas questões podem ser fundamentais na meia-idade, por exemplo, abrir mão da imagem da juventude e entrar em contato com a finitude.

Considerar a vida como um processo ininterrupto, pelo qual passamos e estar em constante desenvolvimento, é fundamental. Envelhecer pode ser perigoso, quando na segunda metade da vida, carregamos o passado como um imenso fardo – os sentimentos, frustrações e uma vida não vivida que representam aspectos não integrados.

Enquanto na infância e na juventude o mundo exterior nos chama, na meia-idade e nos anos maduros é o mundo interior que conta. Sendo assim, muitas vezes, o ambiente exterior cede lugar ao ambiente interior.

Para Arcuri (2008), desta ligação entre os níveis superiores do psiquismo é que o ser humano pode desenvolver um crescimento equilibrado, de forma a ampliar a sua consciência. É uma esfera em expansão, muito mais do que uma linha reta. Esta forma não linear, ou expansão da consciência, pressupõe superação do egocentrismo ou das atitudes separatistas.

A mudança de vida na meia-idade é uma transformação revolucionária. Quando se entra na meia-idade o Self torna-se central, substituindo o tão importante ego. Um novo ponto de vista e uma nova atitude afloram na pessoa, acompanhada por novos valores. Assim, Rudi, nesse outro momento, desliga-se do material em busca de uma conexão maior com o seu ser mais profundo.

O desenvolvimento presente na meia-idade pode durar três ou quatro décadas da vida. É uma retomada da própria história, é um chamado para integrar os aspectos que foram negligenciados até então, quando o passado pode ser externado e reconfigurado: “É o tempo da descida. Talvez o sol não volte a brilhar tanto quanto ao meio-dia, mas pode ser mais confortável e prazeroso ao entardecer” (Reis, 1993, p. 69).

Este processo de reconstrução e integração interior foi nomeado por Jung de Individuação, presente como desenvolvimento próprio da segunda metade da vida e, no nosso caso, deve ser considerado, também, de aspectos transformadores e integradores de uma possível metanoia familiar.

Toda esta transformação na vida do personagem Rudi faz com que a família passe por uma reconfiguração: o homem, ao perder sua mulher, passa a entrar em contato com os apectos sensíveis do ser, negligenciados por ele até então.

Os filhos já não sabem mais como lidar com o pai, temem esta nova personalidade que emerge: em alguns momentos, sensível, frágil e, em outros, autônoma e firme na sua sutileza. Um novo funcionamento familiar entra em ação, novos papéis, novas configurações, inesperadas reflexões: “A ‘dança metanoica familiar’ exige o movimento de todos” (Reis, 1993, p. 68).

A dança da sombra

Deixa os dois mundos e entra na dança, porque além dos dois mundos está o mundo da dança (…) porque a dança é vossa, porque agora sois da dança! (Rumi³, como citado em Wosien, 2002)


³ Jalal ad-Din Muhammad Rumi: poeta, jurista e teólogo sufi persa do século XIII.

Rudi quer trilhar o percurso que sua esposa tanto desejou. Para perseguir seu objetivo, encontra Yu (Aya Irizuki), uma jovem solitária, que mora numa tenda e dança Butoh no parque. Juntos, eles verão o Monte Fuji.

Nesse momento acontece o encontro de duas almas (Rudi e Yu) e duas culturas: Japão e Alemanha se interpenetram, interrelacionam-se nascendo uma nova linguagem para ambos.

Rudi que, no passado, se envergonhava de sua mulher quando dançava Butoh, tem agora a oportunidade de compreender a arte, o sentimento expresso na dança da sombra.

A sensibilidade dos movimentos toca profundamente Rudi, a visão da morte de uma forma bela e serena apresentada por Yu abre definitivamente um horizonte na vida de Rudi. Este contato com o Butoh promove uma intersecção entre os campos da consciência e inconsciente. Esta ligação se apresenta como um psicopompo4 e a possibilidade da transformação da vida vivida até este momento.


4 Psicopompo é a palavra que tem origem no grego psychopompós, junção de psyché (alma) e pompós (guia), designa um ente cuja função é guiar ou conduzir a percepção de um ser humano entre dois ou mais eventos significantes.
Recuperado em 07 outubro, 2015, de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Psicopompo.

Uma sútil delicadeza de sentidos e sentimentos profundos aparecem. Algo o penetra, o impacta e mobiliza, alterando sua percepção, jogando-o em contato com a simplicidade e a sensibilidade de Yu que também guardava feridas e perdas familiares.

O Butoh ou Butô é uma dança que surgiu no Japão pós-guerra e ganhou o mundo na década de 1970. Criada por Tatsumi Hijikata (1928-1986) na década de 1950 o butô é também inspirado nos movimentos de vanguarda: expressionismo, surrealismo, construtivismo, entre outros. Juntamente com Hijikata, Kazuo Ohno (1906-2010) divide a criação desta dança.

Seguindo a estética das artes que tinha como proposta a subversão de convenções, caracteristicamente assumidas pelas vanguardas, o Butoh busca uma forma de expressão que não seja necessariamente coreografada, nem presa a movimentos estereotipados que remetam a uma técnica específica.

O Butoh preocupa-se em expressar a individualidade do butoka, sem máscaras e véus de alegoria; expressar o que o ser humano tem de verdade em sua alma, em seu espírito, mesmo que, para iss,o desvende o que pode haver de mais sórdido, solitário e de trevas do interior do dançarino. E para que isso seja expresso, não cabe que o meio pelo qual se dá a expressão esteja preso às convenções que mascaram a verdade da alma humana.

O que deve ser feito, segundo a filosofia Butoh, é libertar-se das formas do corpo e do pensamento; isso é o que toca Rudi. Ele experimenta a liberdade pela primeira vez em sua vida, pois entrar em contato com a dança que antes tanto rejeitou, deu significado a este momento de transição.

O encontro com Yu, através da dança das sombras (Butoh), fez com que ele se reconectasse como sua essência, sua alma, apropriando-se da sensibilidade como algo dele, ao vivenciar os sonhos da mulher (visitar o monte Fuji, dançar Butoh, conhecer o Japão, reencontrar o filho), ao se aproximar da cultura oriental. Trudi, a mãe, a esposa, era a guardiã do sentido da vida daquela família; ela era o elo sensível da conexão familiar.

Rudi casa-se “verdadeiramente” com Trudi, a partir de sua morte, e seus filhos são libertados para seguir os próprios caminhos, após uma nova transformação, isto é, a morte de Rudi.

É no seu próprio processo de encontro da morte que esse homem compreende o real significado de sua existência: “O conflito é o preço a ser pago pelo crescimento; e suportar a tensão dos opostos é o que possibilita a ampliação da consciência rumo à individuação” (Reis, 1993, p. 69).

Reflexões…

“Eu não sei onde está seu corpo
As lembranças dela estão no meu corpo, e quando o meu corpo não
estiver mais aqui, onde estará Trudi, então”? 5


5 Trecho extraído do filme: diálogo de Rudi com o “vestido azul” de Trudi, em seu corpo.

Um viajante é um experimentador do mundo. Impossível negar o quanto os antigos navegantes e desbravadores como Américo Vespúcio (1454-1512) e Cristovão Colombo (1451-1506) foram em busca do desconhecido, de uma exploração de si mesmos no mundo.

No caso do filme em foco, Rudi precisava realizar essa busca de sentido maior e, concretamente a realizou, atravessando o continente, fazendo a “passagem” para um novo ciclo e, finalmente, encontrar a cultura japonesa coroada pelo Butoh e selada eternamente pelas tão sonhadas cerejeiras em flor: “constela o arquétipo do herói, o potencial de luta e força, com toda a sua pujança” (Reis, 1993, p. 70).

As cerejeiras, na cultura japonesa, são o símbolo da temporalidade. As Flores de Cerejeira significam a beleza feminina e representam o amor, a felicidade, a renovação e a esperança. É uma flor de origem asiática, conhecida como “sakura”, a flor nacional do Japão.

Conta a lenda que a palavra “sakura” surgiu com a princesa Konohana Sakuya Hime6, que caiu do céu perto do Monte Fuji, tendo se transformado nessa bonita flor. Também existe uma crença que o cultivo de arroz foi originado dessa palavra, tendo em conta que “Kura” era o depósito do alimento guardado (visto por muitos japoneses como uma oferta divina).


6 Na mitologia japonesa é a Deusa das Cerejeiras. Seu nome quer dizer “Princesa que faz as árvores florescerem”. Filha do Deus das Montanhas e irmã da Deusa das Pedras, Sakuya Hime rege a Terra, a natureza, o fogo e as
cerimônias.

O início da floração das cerejeiras marca o fim do inverno e a chegada da primavera, e são aguardadas pelos japoneses com grande ansiedade, organizando eles em todo o país diversas festividades em torno do “Hanami” (ato de contemplação das cerejeiras em flor e que deixam a paisagem deslumbrante).

Esse processo de busca do marido Rudi faz-se através do aprofundamento daquele aspecto desconhecido e principalmente daquilo que precisaria ser integrado.

Os samurais, os guerreiros japoneses, eram grandes apreciadores da flor de cerejeira. Desde aqueles tempos, passou a estar associada à efemeridade da existência humana e ao lema dos samurais: viver o presente sem medo.

A cerejeira fica florida por pouco tempo; por isso, suas flores representam a

fragilidade da vida, cuja maior lição é aproveitar intensamente cada momento, pois o tempo passa rápido e a vida é curta.

Impossível deixar de ser tocado pelo convite sensível e instigante que este símbolo exercido pelo encontro de Rudi com o Butoh e Yu marcam sua vida. Quando vivemos experiências limiares e de transição “algo” é ativado no nosso inconsciente e constelado de uma maneira que é inevitável não mergulhar nessas emoções.

A perda ou separação de um ente querido é um marco de transição que propicia a elaboração para um novo ciclo; as flores em cerejeira falam da temporalidade e fragilidade desta vida. Não é fácil admitir que possuímos uma vida não vivida e que por muito tempo temos medo de reconhecer isso em nós mesmos.

Assim, quando o tema arquétipo da morte é constelado, é inevitável o impacto disso, tanto individualmente (Rudi), quanto coletivamente (família). Nesse sentido, a família de Trudi e Rudi também é convidada a rever os seus papéis e valorizar a experiência do pai, mesmo inicialmente tendo um olhar acusador: “passou toda a vida escondido no trabalho. Nem conheceu a mamãe de verdade. Você nem faz ideia de quem ela foi”. 7


7 Trecho extraído do filme aqui em foco.

Com certa perspicácia para as questões humanas, Jung teve um olhar sistêmico para o ser humano. Para ele, as questões humanas, tanto para o bem quanto para o mal, pedem um olhar para o passado, o presente e o futuro. São orientadas segundo sua totalidade, sendo o opus – o trabalho – a busca da reconciliação dos opostos: consciente-inconsciente; bem-mal; masculino-feminino; indivíduo-sociedade; eu-outro; vida e morte.

Assim, esse trajeto que Rudi nos convida a trilhar é a “dança” daquilo que está adormecido e esquecido. A morte despertou a vida em Rudi e o movimentou para uma nova situação.

Dessa forma, há um importante convite individual e familiar que devem ser equacionados por todos nós.

Na metanoia, essa “dança” acontece, porque é necessário se estabelecerem novas relações; é experienciar essa transformação no sentido mais amplo que a individuação nos interpela, pois:

O ser humano psíquico se torna um todo, e este fato traz consequências notáveis para a consciência do eu […] as mudanças que se verificam no sujeito sob o influxo do processo de individuação, pois se trata de uma ocorrência mais ou menos rara, só experimentada por aqueles que passaram pelo confronto – fastidioso, mas indispensável para integração do inconsciente – com os componentes inconscientes da personalidade. Quando as partes inconscientes da personalidade se tornam conscientes, produz-se não só uma assimilação delas a personalidade do eu, anteriormente existente, mas, sobretudo, uma transformação desta última (Jung, 2000, p. 174).

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