27 abr O Desenho-Estória Como Linguagem – Arte Como Processo Psicodiagnóstico
por Irene Gaeta Arcuri4
Resumo
O Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) foi desenvolvido por Walter Trinca em 1972, visando sua aplicação como instrumento auxiliar de diagnóstico. É uma ferramenta subjetiva que reúne dois meios de comunicação: o desenho livre e a contação de estórias.
Possui uma aplicação simples, em que a pessoa conta uma estória para cada um dos 5 desenhos que realiza. Permite que o indivíduo contate áreas sensíveis de sua psique, revelando conflitos e desconfortos emocionais frente ao espaço vazio de uma folha em branco, o que possibilita ao analista uma visão da estrutura e da dinâmica psíquica do
paciente. O D-E pode dar referência e contorno às experiências de ampliação de consciência, pois permite um distanciamento do fenômeno, o que permite avistar, de fora, novas paisagens de velhas situações. Há nessas vivências uma objetividade que torna possível organizar a experiência, na qual a própria expressão é, por si só, curativa. É possível perceber este processo como uma espiral que muda de nível conforme a consciência do indivíduo vai se expandindo e se estruturando.
Palavras chaves: Desenho; Estória; Inconsciente.
A fantasia tem tanto de sentimento quanto de reflexão, e uma parcela idêntica de intuição e de sensação. Todas as funções psíquicas ligam-se, inexoravelmente, uma às outras, sem exceção, através da fantasia. Às vezes, ela se manifesta em sua forma primitiva; outras vezes, é o produto mais elaborado e cabal de todas as faculdades. Assim, a fantasia é, acima de tudo, a atividade criativa da qual provêm as respostas para todas as perguntas que podem ser respondidas. Ela constitui a origem de todas as possibilidades.
Carl Gustav Jung
Introdução
O Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) foi desenvolvido por Walter Trinca em 1972, visando sua aplicação como instrumento auxiliar de diagnóstico. É uma ferramenta subjetiva que reúne dois meios de comunicação: o desenho livre e a contação de estórias.
Possui uma aplicação simples, em que a pessoa conta uma estória para cada um dos 5 desenhos que realiza. Permite que o indivíduo contate áreas sensíveis de sua psique, revelando conflitos e desconfortos emocionais frente ao espaço vazio de uma folha em branco, o que possibilita ao analista uma visão da estrutura e da dinâmica psíquica do paciente.
Faremos um estudo do D-E e sua aplicação dentro da perspectiva da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Pioneiro na adoção da criação artística como parte do processo psicoterapêutico, Jung já entendia que o conhecimento das imagens internas, adquirido por meio da reflexão dessas imagens projetadas nas produções artísticas de seus pacientes, oferecia ao analista uma possibilidade de maior compreensão do psiquismo.
O D-E pode também ser uma ferramenta eficiente na psicoterapia, uma vez que oferece recurso capaz de direcionar o processo do paciente, além de facilitar o acesso ao inconsciente e a questões psíquicas que não são expressas, nem expressáveis, verbalmente, em função do seu caráter nascente ou traumático. Pode permitir ainda o acesso a conteúdos muito primitivos do desenvolvimento do indivíduo, imagéticos, não verbais, que geram se houve dificuldade de integração adequada, adoecimento e desorganização da personalidade.
A emergência de tais conteúdos é facilitada numa situação interpessoal e encontra uma forma de expressão concreta através do D-E. Ao ser representado e objetivado, o conteúdo pode ser mais facilmente integrado à consciência, ampliando o quadro de referências do indivíduo. A integração libera energia para a ação, ao mesmo tempo em que transforma a visão de mundo do paciente. O diálogo que se estabelece de modo mais fluente com o inconsciente, e que pode ser compreendido em suas manifestações por uma consciência que se propõe a estar atenta, constrói e referenda o ser em sua busca por uma identidade mais profunda num processo de desenvolvimento que Jung chama de individuação.
O desenho como linguagem
Para compreendermos a linguagem dos desenhos, devemos partir da premissa de que existe o inconsciente e que os desenhos originam-se no mesmo lugar em que se originam os sonhos (FURTH, 2004).
Os sonhos, enquanto manifestações dos processos inconscientes, traçam um movimento de rotação ou de circumambulação em torno do centro, dele se aproximando mediante amplificações cada vez mais nítidas e vastas.
Devido à diversidade do material simbólico, é difícil, a princípio, reconhecer qualquer tipo de ordem. De fato, nada permite pressupor que as séries de sonhos estejam sujeitas a um princípio ordenador. A uma observação mais acurada, porém, o processo de desenvolvimento revela-se cíclico ou em espiral. (JUNG, 2011, p.39)
Jung interpretou, ao longo de sua prática clínica, cerca de 80.000 sonhos, chegando à conclusão de que “não apenas os sonhos dizem respeito, em grau variado, à vida de quem sonha, mas também são parte de uma única e grande teia de fatores psicológicos. […] no conjunto, parecem obedecer a uma determinada configuração ou esquema” (JUNG, 1960, p. 160). A este esquema Jung chamou de “o processo de individuação” (VON FRANZ, 1964).
Ao longo de cerca de 60 anos de prática clínica e extensa produção de conhecimento, Carl Gustav Jung formulou conceitos teóricos, pesquisou métodos e técnicas para investigação de material psíquico e propôs uma nova forma de abordagem dos fenômenos psicológicos, em busca de parâmetros científicos mais adequados para o estudo do inconsciente. Para Jung, o trabalho com o inconsciente exige uma atitude aberta para com o desconhecido, disponibilidade para o aspecto imponderável do conhecimento e, principalmente, aceitação de novas perspectivas epistemológicas e metodológicas: “Quanto mais o conhecimento penetra na essência do psiquismo, maior se torna a convicção de que a multiplicidade de estratificações e as variedades do ser humano também requerem uma variedade de pontos de vista e métodos” (JUNG, 1991, p. 9).
Sendo assim, Jung foi um revolucionário em sua época, pois abordou temas como religião, alquimia e mitologia, estudando-os como fenômenos psicológicos passíveis de serem investigados cientificamente. Ao introduzir a perspectiva simbólico-arquetípica como fundamento e ferramenta para o entendimento da realidade psíquica, Jung
possibilitou a integração de vários aspectos dissociado tais como subjetividade e objetividade, razão e espírito, individual e coletivo, pessoal e universal.
O uso de uma sequência de desenhos parece seguir esta mesma dinâmica, que traz a expressão simbólica da vida, do crescimento, a partir de um ponto alimentador que fornece energia a um todo. Assim como na técnica do D-E, Jung propunha analisar sonhos em séries.
Ao desenhar os 5 desenhos propostos pela técnica D-E , ambos, terapeuta e paciente podem visualizar uma estrutura dramática na história com começo, meio e fim tal qual na estrutura dos sonhos. E, ao que parece, a solução do sonho também se reflete no D-E, pois tanto nos sonho como no desenho aponta-se para uma resolução. Visualizar o processo vislumbrando seus desfechos prováveis através dos símbolos constelados quando trabalhamos com a hipótese de uma organização finalista do símbolo (teleológica) é muito importante na psicoterapia.
Muitas vezes, quando examinados em séries extensas, podemos identificar, com surpreendente clareza, a continuidade do fluxo inconsciente de imagens. A continuidade manifesta-se na repetição dos chamados motivos. Estes podem referir-se a pessoas, animais, objetos ou situações. Portanto a continuidade da sequência de imagens é expressa pelo fato de o motivo em questão sempre reaparecer numa longa série de sonhos. (JUNG, 1985, p. 9)
É um modelo de jornada da alma, cujo percurso se move da periferia para o centro, em busca da apreensão da totalidade. Ter o domínio da universalidade da imagem é muito importante para os terapeutas que utilizam as metodologias expressivas da psique, uma vez que tais imagens carregam em si significados a serem integrados à consciência.
Os complexos
Os trabalhos terapêuticos que possibilitam o acesso ao inconsciente estimulam a reconstituição e a reconstrução da unidade psicológica do indivíduo. Isso porque lhe permitem chegar a memórias anteriores à codificação consciente, traduzindo-as em imagens, depois em emoções e, por fim, em linguagem, trazendo para a consciência aquilo que não poderia ser expresso diretamente por meio da fala, uma vez que foi codificado em termos de padrões de comportamento, e não como linguagem verbal.
A área correspondente à expressão motora da fala, denominada área de Broca, só se desenvolverá num momento posterior do processo maturacional do Sistema Nervoso Central do indivíduo. Portanto, não há como expressar verbalmente lembranças primitivas, que nem foram codificadas de forma consciente devido à imaturidade do sistema. Elas formam padrões implícitos de percepção e reação ao mundo, da mesma forma como o que ocorre com as vivências traumáticas. Em ambos os casos, os fatos registrados na memória implícita (não declarativa), produzirá lembranças não do fato em si, mas apenas do estado afetivo vivenciado. A criança, desde recém-nascida tem esta qualidade de memória já apta para funcionar. Por esse motivo, o trauma não pode ser verbalizado, mas apenas experimentado sob a forma de emoções ou imagens.
A cena traumática, ou a experiência do trauma crônico, ficam registradas em imagens ou sensações que na tentativa de autorregulação da psique, em busca de integração se repetem ao longo da vida da pessoa. Os comportamentos compulsivos funcionam como uma tentativa de gerar o estado excitatório, a intensidade emocional que foi vivida pelo sujeito no momento do trauma, pois, ao reviver o trauma, endorfinas são produzidas pela glândula hipófise e elo hipotálamo, trazendo um efeito analgésico e de sensação de bem-estar, fazendo a pessoa se acalmar. Não há, entretanto, uma verdadeira elaboração do trauma, que só se resolve quando encontramos um significado para o que aconteceu dentro de uma autobiografia organizada.
O sistema límbico do cérebro, incluindo a amígdala, responsável pela memória, traumas, música, entonação verbal, metáforas, também responde a símbolos com um contexto emocional, tais como ícones, mandalas e arte. A amígdala associa emoções com símbolos. Ela recebe informações do córtex e as integra em informações sensoriais externas e internas, o que resulta na experiência de realidade do indivíduo. (CARRUTHES, 2009, apud HORSCHUTZ, 2010 p.10)
O D-E é a expressão simbólica da vida. Trata-se de um vai e vem constante entre o interior e o exterior do movimento vital de todo o ser, que oscila constantemente entre a expansão, a exploração e a volta ao centro, para aí encontrar a fonte de energia, integrar os dados recebidos e organizar uma nova investigação. É a força centrífuga, que leva o ser humano para a exploração, e a força centrípeta, que traz o indivíduo para a introspecção (HORSCHUTZ, 2010).
Em seu artigo A Energia Psíquica, Jung descreveu os espíritos como complexos autônomos que ainda não foram integrados à consciência. Esses complexos podem ser revelados para a consciência quando, por exemplo, desenhamos ou pintamos um quadro de algo, o que quer que seja que esteja nos assombrando, de nossas dúvidas, tensões ou anseios.
Uma vez que um complexo é reconhecido, normalmente dá-se início a um processo espontâneo de restauração, que pode ser testemunhado nos sonhos e fantasias e também nas imagens do D-E.
Encontramos exemplos na literatura. Saint-Exupéry, em seu livro O Pequeno Príncipe, traz a imagem tão conhecida da jiboia engolindo um elefante. Podemos inferir vendo esta imagem que o elefante é o próprio personagem, que está sendo engolido pela jiboia (símbolo do oroborus, a Grande Mãe), o que sinaliza o perigo da regressão da libido sem a possibilidade de retorno. O desenho traz em si a manifestação do complexo materno com suas implicações. Von Franz (1992) faz um estudo sobre o homem que possui um complexo materno ele sempre terá que lutar com suas tendências de se tornar um puer aeternus.
Jung (1973) escreve sobre o puer, ele diz: “Considero a atitude do puer aeternus um mal inevitável. O caráter do puer aeternus é de uma puerilidade que deve ser de algum modo superada (…) ele não consegue assumir responsabilidade por sua própria vida” (pg.82).
Jung descreveu os complexos quando trabalhava com o experimento de associação, que repousa no princípio de que as pessoas estão o tempo todo em condições de ligar ideias que podem facilmente chamar outras à esfera do consciente, sendo possível “alcançar o centro (do complexo) diretamente, de qualquer ponto de uma circunferência, a partir de um sonho […], de um quadro de pintor moderno ou, até mesmo, de um bate papo ocasional” (JUNG, 1991, p. 28).
Os complexos do inconsciente nos invadem nos momentos em que menos esperamos, e essa dinâmica, decorrente do impulso de individuação, pressiona para a conscientização dos conteúdos inconscientes. Ela tem como objetivo e consequência revelar aquilo de que menos gostamos em nós mesmos, o lado obscuro que Jung denominou de sombra. Por definição, sombra é aquilo que nosso meio circundante – amigos, parentes, etc.– veem com clareza o tempo todo e nos apontam para nosso desespero, uma vez que causa sofrimento, vergonha, raiva etc. Quando, depois de muito sofrer, integramos na consciência esses conteúdos, nós nos livramos de sua influência.
Os complexos, diz Jung, resultam do “choque entre uma exigência de adaptação e a constituição especial e inadequada do individuo para suprir esta exigência” (1991, p.39). Por isso, o complexo tem origem no relacionamento com os pais pessoais e com o mundo que eles representam.
Cada evento carregado de afeto pode se transformar em uma nova constelação de complexo, se o acontecimento não estiver relacionado com um complexo já existente.
Possui uma significação momentânea que submerge gradualmente, com diminuição da tonalidade afetiva, na massa latente da memória, aí permanecendo até o momento em que uma impressão semelhante o reproduza novamente.
Mas, se um acontecimento afetivo encontra um complexo existente, ele dá continuidade ao mesmo.
Nossos complexos projetam-se nos outros ou no mundo. Muitas vezes a projeção dos complexos é positiva, agindo de forma construtiva a fim de facilitar a adaptação ao mundo. O complexo se expressa com os meios disponíveis é possível então, com experiência e certa dose de sensibilidade, alcançar o sentido profundo das imagens com alta carga afetiva desenhadas ou pintadas pelo paciente. O complexo pode, então, atuar de modo positivo ou negativo, e nem sempre tem que ser superado. Os complexos se manifestam no corpo pelos sintomas, nos sonhos se personificam em pessoas animais, objetos e nos Desenhos-Estórias (D-E) eles adquirem forma. Quando negativos, roubam do ego possibilidades existenciais, na medida em que provocam reações defensivas.
Quando conscientizados, a energia que eles roubaram do ego, criando mecanismos de defesa contra a invasão na consciência, é devolvida ao ego que se fortalece.
Jung nos lembra de que o fato de tais imagens, em certas circunstâncias, terem efeito terapêutico considerável sobre seus autores, é empiricamente comprovado. Além do mais, tal fato é facilmente compreensível, posto que essas imagens representam, não raro, tentativas ousadas de ver e reunir opostos aparentemente inconciliáveis e vencer
divisões anteriormente intransponíveis.
Desenho-Estória – arte & sonhos
A leitura do D-E deve atuar em nós como a sequência de imagens do sonho que, mesmo sem dela termos uma compreensão racional, pode exercer um efeito homeostático sobre nós. O desenho se apresenta para o mundo como uma imposição do processo criador do paciente. Quando temos grandes sonhos, de cunho arquetípico, que nos causam profunda impressão, também temos a necessidade de contá-los, como se não pertencessem somente a nós. É dessa maneira que se manifestam os símbolos no sonho e também no D-E. “Assim como uma planta produz flores, a psique cria os seus símbolos. E todo sonho é uma evidência deste processo.” (JUNG, 1964, p. 5).
O D-E emerge como fotografia do inconsciente, revelando aspectos pessoais e coletivos. Contextualizado em tempo histórico, fornece uma leitura do movimento da libido e pode ser prospectivo, trazendo o que está por vir.
Para Jung, a imagem e seu significado são idênticos e, à medida que a primeira assume contornos definidos, o segundo se torna mais claro. A forma assim adquirida, a rigor, não precisa de interpretação, pois ela própria se basta e descreve seu sentido. Silva (2008) afirma que o treinamento artístico não disfarça os aspectos caracterológicos – traços da personalidade ou do caráter – nem nos grandes artistas. É o que vemos em Vincent Van Gogh, por exemplo, que expressava na intensidade das cores de suas telas o tormento da força de seus sentimentos.
Os símbolos são a linguagem à qual o inconsciente recorre para se expressar, para transmitir seu conteúdo à mente consciente. As imagens simbólicas também podem emergir por meio dos sonhos, da imaginação, expressa de maneira espontânea por meio de recursos artísticos (JUNG, 1995). A ausência de contato com o inconsciente pode ter consequência a unilateralidade da consciência, seu consequente empobrecimento, podendo com angústias ou conflitos que parecem inexplicáveis, podendo levar a depressão, impulsos irracionais fora de controle, crises de ansiedade e mesmo surtos psicóticos, para citar apenas algumas possibilidades psicopatológicas, que ocorrem pelo aumento de carga energética retida no inconsciente.
O inconsciente exerce influência constante, intencional e autônoma sobre a psique e a personalidade dos indivíduos, embora nem sempre isso seja percebido.
Em situações de atendimento clínico, o aparecimento de imagens simbólicas após a utilização de recursos artísticos pode proporcionar contenção para os conteúdos do inconsciente, com eventual aproximação entre consciência e inconsciente, por meio da construção de um canal de conexão não verbal.
Pode-se levar a mente do paciente, por meio de medidas terapêuticas comuns, a uma distância segura de seu inconsciente, por exemplo, induzindo-o a representar sua situação psíquica num desenho ou num quadro. Com isso, o caos que nos parece impossível compreender ou formular é visualizado e objetivado, podendo, então, ser observado à distância, analisado e interpretado pela consciência. O resultado deste método parece residir no fato de a impressão originariamente caótica e amedrontadora ser substituída pela imagem que dela se faz. O ‘tremendum’ é ‘desencantado’ pela imagem, tornando-se banal e familiar. Quando o paciente se vê ameaçado pelos afetos da experiência originária, as imagens por ele projetadas servirão para aplacar o terror. Um bom exemplo deste procedimento é a visão aterradora de Deus. (JUNG, 1986, p. 249)
Os símbolos não apenas exprimem as profundezas do ser às quais dão forma e figura, mas também – com a intensa carga afetiva de suas imagens – desvelam o desenvolvimento dos processos psíquicos, transmutando as energias e “convertendo o chumbo em ouro”. A Psicologia Analítica pondera que os símbolos presentes nnas manifestações inconscientes das pessoas podem corresponder a imagens presentes em mitos antigos, na arte e na religião de tempos e lugares desconhecidos por quem sonha.
A cultura e a religião fornecem elementos para melhor compreensão do universo arquetípico. Ao longo dos tempos, em diferentes culturas, a humanidade sempre teve como pressuposto a existência de uma entidade interior invisível. Por exemplo, em alegorias poéticas e religiosas, é frequente que os homens façam referência à alma como entidade feminina, tida como musa, fonte de inspiração para a poesia, a literatura, a arte e, também, provedora de sensibilidade refinada. De maneira diferente, para as mulheres é a presença da força e da sabedoria que alimenta a imaginação do masculino.
Jung (1999) considera que a alma, descrita na linguagem religiosa, tem uma contrapartida psicológica, ou seja, há uma parte objetiva da psique que realiza as mesmas funções. A título de distinção entre a entidade psicológica objetiva e aquela da concepção religiosa, Jung designou-a primeira de anima (alma), para os homens, e de animus (espírito), para as mulheres. A alma representa a realidade interior e, sobretudo, um conjunto de imagens simbólicas : as várias imagens de anima e de animus pelas quais é representada a vida interior. Tal conjunto de imagens está amplamente presente em mitos e fábulas e é semelhante em diferentes culturas e manifestações artísticas, bem como nas religiões. Em suma, a estrutura básica, identificada por Jung como anima e animus, reveste-se, para ele, de universalismo, o que é uma característica do arquétipo (JUNG, 2001a). Os arquétipos da anima e do animus são apenas alguns entre os arquétipos que constituem a psique humana, e em cada individuo, em seu contexto, se manifestam em imagens particulares, sendo, portanto, inumeráveis as representações derivadas dos arquétipos no inconsciente e posteriormente na consciência.
Símbolo é a relação do todo psíquico com as vivências, sejam elas fatos, coisas, corpo, ideias, emoções. Toda vivência psíquica é simbólica, mesmo quando ainda não temos a capacidade consciente de percebê-la como tal. Assim, os símbolos estão presentes estruturando a personalidade por meio da ação totalizadora do arquétipo do Self. Qualquer coisa se torna símbolo ao nos abrirmos para vivenciar suas ligações com o todo. Jung entende que os símbolos transcendem os opostos, porém alguns, que vão além e abrangem a totalidade, são símbolos do Self (JUNG e WILHEIM, 2001). O que torna uma imagem símbolo do self, ou de qualquer outro arquétipo, é a experiência pessoal, o significado da imagem em termos de potencial de crescimento ou integração para o indivíduo no qual emerge. Entretanto, existem símbolos coletivos com potencial de mobilização de toda uma sociedade.
De um ponto de vista psicológico, Cristo representa, enquanto homem primordial, uma totalidade que ultrapassa e envolve o homem comum, e corresponde à personalidade total, que transcende o plano da consciência. Como já indiquei anteriormente, chamei essa personalidade de si-mesmo. (JUNG, 1995, p. 414)
Jung considera o Self como abrangendo o consciente e o inconsciente, e posteriormente Jung diferenciou o Self do ego da seguinte maneira:
O ego está para o Self como o que é movido está para o que move, ou como o objeto para o sujeito, pois os fatores determinantes que se irradiam do self circundam o ego por todos os lados e o transcendem. O self, como o inconsciente, é um ente a priori, do qual o ego evolui. (JUNG, 1995, p. 391)
Para Jung, o Self precisa do ego para ter consciência, apesar de sua natureza transcendente, o que configura uma relação de mutualidade, sendo, no entanto, o motor e o combustível do processo de individuação, ao qual o ego deve se submeter. O pressentimento que as pessoas têm da existência de um centro da personalidade, de um lugar central no interior da alma, com o qual tudo se relaciona e que ordena todas as coisas, representando ao mesmo tempo fonte de energia, reflete-se na mandala. O centro não é pensado como sendo o eu, mas como o Si-Mesmo ou a personalidade total.
O autoconhecimento não é para a Psicologia Analítica um inventário dos conteúdos da consciência. Quando o conteúdo inconsciente encontra-se bloqueado ou retido pelos mecanismos de defesa, traumas, somatizações ou estresse isso provocará um aumento do nível energético do inconsciente e a possibilidade de emergência de um novo símbolo (GAETA, 2010), permitindo a transformação da estrutura da consciência e a assimilação do conteúdo inconsciente que anteriormente não podia ser assimilado.
O arteterapeuta precisa estar sempre a serviço do Self do paciente, e não do ego.
Sua entrega consciente às orientações do inconsciente do paciente, submetido, sempre, à responsabilidade moral do ego, favorece a constelação de um centro de cura; é o reconhecimento do limite do terapeuta que traz a potência de cura para a alma do paciente; e é o jogo dialético entre duas pessoas, conscientes e inconscientes, potentes e impotentes, na transferência e na contratransferência, que faz com que as polaridades se manifestem e possam ser integradas, na busca por uma vida que realmente se realize em todo seu potencial essencial. No esforço de compreensão do ser humano, em sua singularidade, não basta a observação clínica: há a necessidade de provocar, de desafiar, de estimular uma experiência integral. Nessa direção está a busca da ampliação da consciência – no sentido de que algum conteúdo inconsciente seja integrado à consciência.
Estudo de Caso
Mariana é uma menina de oito anos. Sua mãe procurou uma avaliação psicológica, pois estava preocupada com o silêncio de Mariana. Separada há um ano, sentia-se despreparada para lidar com o desenvolvimento emocional da menina. Ela é de origem oriental, uma empresária bem-sucedida, e o ex-marido é médico, de ascendência italiana. Sentia-se culpada por ter trabalhado muito e negligenciado Mariana e seu casamento. Como seu trabalho exigia viagens constantes, muitas vezes esteve afastada da filha. Seu ex-marido cumpria funções maternais – buscava na escola, contava histórias para dormir, etc.
A mãe achava que não daria conta desta lacuna deixada pelo pai com a separação conjugal. Sentia-se corroída pela culpa. Questionava a sua cultura japonesa – dizia que só aprendera a trabalhar e não entendera que deveria ter se dedicado também ao casamento.
Mariana é uma menina inteligente e não apresenta nenhum problema escolar. No entanto, chora ao tocar no nome do pai, omitindo das amigas a separação e preferindo o silêncio na maior parte do tempo.
Propusemos uma avaliação breve, pois estávamos na véspera das férias escolares. Neste contexto, foi sugerido o uso do D-E.
Unidade de Produção I
Mariana é mesmo silenciosa, pequena, quieta, pouco disponível para a tarefa e econômica nas palavras.
Pega o lápis preto e começa a desenhar um formigueiro que ocupa a folha inteira.
Com lápis de cor, pinta a formiga rainha com a cor amarela e as formigas operárias com a cor marrom. A riqueza do formigueiro parece apontar para a riqueza do universo interior de Mariana.
Enquanto fora, no mundo exterior, ela é quieta e silenciosa, dentro, uma vida intensa e organizada acontece. O símbolo da formiga é conhecido em nossa cultura – basta lembrar da fábula da formiga que trabalha no verão para ter conforto no inverno –, mas aponta para o trabalho sem lazer.
Como é econômica com as palavras, Mariana apenas dá o título O formigueiro ao desenho. Quando realizamos o inquérito, a única coisa que profere é: “As formigas estão guardando comida para o inverno”.
Como sua família materna é japonesa, culturalmente os valores do trabalho parecem bem sólidos. Mariana mostra também uma necessidade de poupar recursos para épocas menos abundantes, denotando, ao mesmo tempo, prudência e insegurança. Guardar comida é uma tentativa de autonomia.
Unidade de Produção II
No segundo D-E, Mariana desenha um sol. Usa cores fortes. O céu ela pinta com a cor vermelha, o sol, com amarelo, e um rio, na cor azul, com reflexos do sol e de vermelho. Peço o título, e Mariana diz: “O sol”. Peço que conte uma história, e ela apenas diz: “O sol está refletindo luz na água. E significa que o sol está se pondo. E é tarde”.
O simbolismo do Sol é tão diversificado quanto é rica de contradições a realidade solar. “O Sol gera e devora os seus filhos” (CHEVALIER, 1982, p.839).
Mariana demonstra possuir um mundo interno como um santuário protegido e estável para a intensidade de suas emoções. Ninguém poderia ter acesso a esta riqueza interna; era seu mundo secreto. Não visto não visitado, não exposto, não manifestado.
Mariana é intensa e, ao mesmo tempo, contida, aliando a isso muita criatividade. A intensidade das cores usada em seu D-E me faz lembrar um diálogo do Van Gogh e Theo, em que Theo se referia à intensidade emocional de Van Gogh – que tentava pintar do sol a luminosidade e alertava para o perigo de entrar em contato com tanta intensidade no universo da Luz.
Mariana, de alguma forma, precisaria manifestar esta intensidade contida, caso contrário, e se a mesma não pudesse ser acolhida, haveria o risco de evoluir para alguma patologia.
Unidade de produção III
Mariana faz agora o terceiro D-E e dá a ele o título de Rosa. Peço novamente que conte uma história, e ela apenas diz: “É uma flor rosa e ela é bonita”.
O desenho é claramente uma mandala, mostrando organização para a sua intensidade psíquica. Jung observou que as mandalas aparecem em estados de dissociação psíquica ou de desorientação. Assim, por exemplo, surgem em crianças cujos pais estão em vias de separação, ou em adultos que, confrontados com a problemática dos opostos da natureza humana, se desorientam e se submetem ao tratamento de sua neurose. Em tais casos, vemos nitidamente como a ordem rigorosa de tal imagem circular compensa a desordem e perturbação do estado psíquico, e isso por intermédio de um ponto central em relação ao qual tudo é ordenado. Trata-se evidentemente de uma tentativa natural de autocura, que não surge de uma reflexão consciente, mas de um impulso instintivo.
Unidade de Produção IV
Mariana desenha uma borboleta. Peço que dê um titulo, e ela apenas diz: “é uma borboleta!”. Peço que conte uma história, e ela diz: “Ela é uma borboleta colorida”.
De imediato, consideramos a borboleta como um símbolo de ligeireza e de inconstância. “Outro aspecto do simbolismo da borboleta se fundamenta nas suas metamorfoses: a crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser; a borboleta que sai dele é um símbolo de ressurreição. É ainda, se preferir, a saída do túmulo” (CHEVALIER, 1982, p.138). Penso que Mariana coloca seu momento de transformação, pois vive o final da primeira infância junto com a separação dos pais. Há uma pressão interna para a transformação, mas a forma ainda não se apresenta de maneira estruturada.
Em seu desenho, Mariana não havia colocado os limites externos, apontando, assim, para a possibilidade de configurações novas em sua nova fase de vida (em que os valores também sofreriam mudanças), bem como de uma nova postura diante da vida.
Unidade de Produção V
Mariana realiza seu último D-E. Desenha um círculo e pinta de marrom. E desenha, acima do circulo, dois olhos. Pergunto o título, e ela apenas diz: “Um girino”. Peço a história, e, de forma econômica, ela escreve uma frase: “Esse é um girino marrom”. O sapo é símbolo de sucesso. “Por outro lado, existe uma ligação entre o homem e o sapo pelo fato de que, numa certa etapa da gestação, o embrião humano se transforma em sapo – quando se trata de um embrião feminino – ou num pequeno lagarto – se o embrião é macho” (CHEVALIER, 1982, p.803).Com o aparecimento do “bicho-feto”, Mariana inaugura o nascimento seminal de uma nova fase. Mariana tinha uma forma de adaptação ao mundo (formiga) que deixou de ser funcional. A libido e introverteu (regrediu) e mobilizou um novo símbolo – mandala (flor) –, que depois se diferenciou como borboleta, evidenciando a transformação. Por fim, a nova fase se anuncia estruturada em uma “semente de bicho” (girino).
Considerações finais
O D-E pode dar referência e contorno às experiências de ampliação de consciência, pois permite um distanciamento do fenômeno, o que permite avistar, de fora, novas paisagens de velhas situações. Há nessas vivências uma objetividade que torna possível organizar a experiência, na qual a própria expressão é, por si só, curativa. É possível perceber este processo como uma espiral que muda de nível conforme a consciência do indivíduo vai se expandindo e se estruturando. Sabemos, pelas conquistas da psicologia, que a origem dos transtornos psíquicos encontra-se na impossibilidade de integração de conteúdos do inconsciente à consciência.
As imagens que emergem no processo do D-E são manifestações do self, o centro e a totalidade da psique. Por meio da expressão plástica, os símbolos do inconsciente cooperam para a autorregulação do equilíbrio da totalidade, compensando atitudes unilaterais que não estão adequadas ao todo da psique, o que por vezes ameaça as necessidades vitais da pessoa. Essa compensação é exercida através de elementos que faltavam à consciência, que a completam ou que contrastam com ela. Jung (1995) reconheceu na teoria das compensações uma regra fundamental do comportamento psíquico: a insuficiência num ponto cria excesso em outro ponto. Ao travar um diálogo interior com as imagens, o ego deixa sua posição passiva e interage com elas, ou estabelece uma relação com o inconsciente que não envolve a linguagem. Ao abrir espaço para o não racional, o ego sai da situação narcísica do espelhamento, dando oportunidade à mudança.Deixar fluir as imagens, e se confrontar com elas, são atos geradores de movimento em via de mão dupla: há uma modificação e uma nova configuração. Trata-se de uma modificação que também modifica o sujeito. Para isso, não é necessário levar a imaginação até a solução dos problemas. Basta evidenciar as
imagens para que sejam vividas, para que possa haver a compreensão da maneira pela qual elas influenciam os sentimentos. Assim se desenvolve competência para lidar com os temas constelados na psique. Em outras palavras, o Desenho-Estória promove o encontro entre pensamento e sentimento, rompendo a dualidade da experiência do mundo interno com o mundo externo.
Referências
ARCURI, I. G. e CATTA-PRETA, M. Sonhos & Arte – Diário de Imagens. São Paulo: Primavera Editorial, 2012.
CHEVALIER J. e GHEERBRANT A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
FURTH, G.M. O mundo secreto dos desenhos: uma abordagem junguiana da cura pela arte. São Paulo: Paulus, 2004.
GAETA, I. Psicoterapia junguiana: novos caminhos na clínica. O uso do desenho de mandalas e calatonia. São Paulo: Vetor, 2010.
HORSCHUTZ, R. W. O símbolo da mandala no sandplay. Monografia (Terapeuta de
Sandplay). International Society for SandplayTherapy – ISST, 2010.
JUNG, C.G. Estudos Sobre Psicologia Analítica. Petrópolis: Vozes, 1976.
JUNG, C.G. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, Vozes, 1985.
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4 Doutora em Psicologia, psicóloga, arteterapeuta, coordenadora do curso de Pós-Graduação em
Psicoterapia Junguiana UNIP e do curso Corpo e Arte – Segundo Carl Gustav Jung – PUC/SP.