REDENÇÃO: MITO E CALCINATIO

REDENÇÃO: MITO E CALCINATIO

por Cristina Pinheiro Rodriguez

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Resumo

Considerando as referências da cultura ocidental vigorosamente alicerçadas na cosmovisão cristã, o presente trabalho visa explorar os paradigmas existentes no conceito de redenção a partir da perspectiva junguiana, abarcando o simbolismo da cultura judaico-cristã como medida de aprofundamento psíquico a partir de paralelos e distanciamentos sobre esta compreensão. Em aspecto complementar, os estudos alquímicos servirão de alicerce para fundamentar a dinâmica psíquica presente na redenção a partir da relação entre ego e Self diante da operação alquímica da calcinatio, ressoando com dimensões mitológicas presentes nesta conjuntura.

Introdução

Ao examinar os paradigmas existentes no pensamento ocidental, é possível constatar forte influência da cosmovisão cristã em função dos desdobramentos sócio-históricos alicerçados nesta cultura, desde momentos em que o dogma cristão se manifestou com maior preponderância até em períodos em que o racionalismo passou a predominar como referência (KIRCHNER e SILVA, 2022). Impreterivelmente, o psiquismo presente dentro desse cenário passa a revelar as reverberações desse paradigma, tal como Jung sinalizava a respeito do pensamento ocidental fundamentar-se significativamente sobre um modo cristão e extrovertido1, de forma que “A graça provém de uma outra fonte; de qualquer modo, ela vem de fora.” (JUNG, 2013, §771).

Considerando este aspecto acrescido ao fato de que todo “ponto de vista religioso representa sempre a atitude psicológica e seus preconceitos específicos” (Jung, 2013, §771), a análise da redenção terá como objetivo explorar os aspectos religiosos da obra bíblica a partir do prisma psicológico, dimensionando uma perspectiva introvertida de redenção. Para tanto, ampliações com o procedimento alquímico da calcinatio serão o foco desta pesquisa bibliográfica sob a justificativa de que o simbolismo alquímico é analisado como produto da psique inconsciente (EDINGER, 2006), bem como o uso de mitos que abarquem essa dimensão, dado que são estruturantes da vida humana e psíquica (CAMPBELL, 1990).

A fim de compreender o tema da redenção sob a perspectiva da psicologia analítica, torna-se fundamental embasar este artigo em autores clássicos desta psicologia, tais como Carl Gustav Jung; Marie Louise Von Franz e Edward F. Edinger, considerando o rigor epistemológico presente na construção do método dos autores. Além disso, o uso de mitos e do estudo da alquimia se dão em função de atribuir maior profundidade para esta análise, de forma a ampliar e articular este fenômeno. Para isso, a revisão bibliográfica se faz como recurso mais adequado neste contexto, considerando que “os diferentes métodos de revisão bibliográfica surgem como alternativas de compreensão ampla do conhecimento de um campo, área ou objeto de pesquisa” (BOTELHO; CUNHA; MACEDO, 2011 apud CAVALCANTE; OLIVEIRA, 2020).

1. Redenção e cosmovisão cristã

A palavra redenção, amplamente utilizada em diversos contextos, advém de redemptio, onis: “Ação ou efeito de redimir”; “Ato de resgatar ou de libertar de qualquer forma de escravidão ou opressão; libertação, resgate” (REDENÇÃO, 2024) e traz ressonâncias com diversas áreas do conhecimento, tais como teologia, antropologia e psicologia. No campo da teologia, por exemplo, a ideia de redenção se encontra através de algumas passagens ou livros bíblicos, como a crucificação de Jesus; Gênesis; o Livro de Rute e a história com a rainha de Sabá, e assume proporções psicológicas à medida em que os livros presentes na Bíblia podem ser considerados como “autorrevelações da psique objetiva” (EDINGER, 1990, p. 31).

Diante disso, observa-se a passagem de uma psicologia coletiva para uma individual, (EDINGER, 1990) do Antigo para o Novo Testamento, à medida em que inicialmente a representação de Iahweh se encontra mais indiferenciada na relação com o homem, pois este assume caráter coletivo majoritariamente nas representações de Israel, e passa a se diferenciar a partir de Jó, quando de fato há um encontro de Iahweh e Jó como indivíduo (EDINGER, 1990). Esta instância traz a importância das dimensões coletiva e individual da psique atuando conjuntamente com a finalidade de maior equilíbrio, pois o contrário disto poderia implicar no risco da unilateralidade, tal como discorre Jung (2013, p. 159) quando declara que a falha, portanto, não reside nem na psique coletiva, nem na psique individual, mas no fato de permitir-se que uma exclua a outra. Tal inclinação vem ao encontro da tendência monista, que sempre e em toda parte rastreia apenas um único princípio. (…) Este monismo psicológico, ou melhor, este monoteísmo tem a vantagem da simplicidade e o inconveniente da unilateralidade.

Por conseguinte, tal condição estaria excluindo a pluralidade psíquica e, com isso, possibilidades múltiplas de desenvolvimento, desencontrando com a realidade exposta neste trabalho pela impossibilidade de redenção, considerando que esta ocorre justamente na via da pluralidade.

A dinâmica presente nestas expressões é evidenciada quando Edinger (2006) explora elucidações importantes sobre determinados aspectos do desenvolvimento na relação entre ego e Self a partir da fenomenologia da individuação, que contribuirão para estes estudos à medida em que a ênfase nessa circunstância se dará principalmente no processo inicial de separação progressiva do ego em relação ao Si-mesmo.

Por conseguinte, a partir do Novo Testamento, nota-se a da ideia de salvação messiânica, “entendida globalmente como libertação de todos os males que podem afligir o homem nomeadamente na conclusão dos milagres” (VAZ, 1984, p. 59) e talvez a máxima ilustrada nesse campo de entendimento se dê a partir da passagem da crucificação de Cristo, conforme ilustra Silva (1984, p. 106)
a dimensão real, ou de Cristo-Rei, com pleno mérito da vontade que redime pela Paixão e Crucificação, correspondendo à descida incarnacional máxima do Senhor, ao coração do próprio Homem, isto é, ao sofrimento físico, redimindo-o no fardo do seu pecado, da sua vontade, da resistência pecaminosa da sua condição decaída; ou seja, no panorama extrovertido, em que Cristo se configura como redentor e o homem como redimido, pode-se averiguar a atribuição da necessidade de redenção do homem a uma figura divina autônoma e externa. Contudo, a condição introvertida desta concepção abarca a ideia do homem como ser redimido e redentor, simultaneamente, por meio da relação entre ego e Self.

O uso de tais termos advém do que Jung (2015) estudou como tipos psicológicos em função de buscar compreender a forma diferenciada pela qual o sujeito se orienta nas relações com os mundos externos e internos (WHITMONT, 2010). Dessa forma
O extrovertido é uma pessoa cuja consciência está predominantemente dirigida para os objetos externos – para o mundo externo.

O introvertido é predominantemente orientado para o sujeito – para o mundo interior da psique; para ele, a realidade psíquica é uma experiencia relativamente concreta, algumas vezes até mais concreta que a realidade externa (WHITMONT, 2010, p. 125)
Por esta razão, uma análise extrovertida da redenção se daria em termos de uma realidade dirigida ao mundo exterior, considerando os aspectos vivenciados nos escritos de algumas culturas ou na vivência concreta de dada realidade, enquanto uma interpretação introvertida busca compreender a dimensão desses aspectos na perspectiva interna e, portanto, psíquica, alvo deste trabalho.

2. Redenção na relação entre ego e Self

Ao contemplar o Si-mesmo como arquétipo da totalidade, torna-se imprescindível considerar seu caráter inexprimível. Jung (2016) abarca como arquétipo “um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação” (JUNG, 2016, §155). Ou seja, o arquétipo traz a concepção de um campo de potência de significados, através dos quais as experiências vivenciadas a partir do campo consciente irão constituir e compor os aspectos destas formas diante de grandes temas da humanidade, cabendo a ressalva de que, de certa forma, essa condição sempre trará determinado aspecto desconhecido, uma vez que não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo inconsciente com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente variadas que nos remetem para uma forma básica irrepresentável que se caracteriza por certos elementos formais e determinados significados fundamentais, os quais, entretanto, só podem ser apreendidos de maneira aproximativa (JUNG, 2000, §417).

Jacobi (1995) expressa essa condição ao retratar os arquétipos como um “como se”, uma vez que a descrição precisa e racional acerca de definições a respeito deste conceito encontram-se além da racionalidade. Dessa forma, “Os arquétipos são, de acordo com a sua definição, fatores e motivos que coordenam elementos psíquicos no sentido de determinadas imagens (que devem ser denominadas arquetípicas) e isso sempre de maneira que só é reconhecível pelo efeito” (JACOBI, 1995, p.37).

Jung (2016) evidencia ainda mais esta circunstância quando demonstra que a expressão do arquétipo se dá pela manifestação da forma sem conteúdo, sendo este último preenchido com as experiências conscientes. Nesta condição, cabe mencionar a noção de arquétipo como um campo de potências em torno de um tema central, que seria a forma, enquanto os conteúdos seriam as experiências que vão se aproximando em torno deste núcleo. Jung (2016) expressa essa ideia quando traz o exemplo do cristal, em que sua forma (do arquétipo), por outro lado, como já expliquei antes, poderia ser comparada ao sistema axial de um cristal, que pré forma, de certo modo, sua estrutura no líquido-mãe, apesar de ele próprio não possuir uma existência material. Esta última só aparece através da maneira específica pela qual os íons e depois as moléculas se agregam (JUNG, 2016, §155).

A partir disto, é plausível acentuar que a condição humana não se depara com arquétipos em sua definição, mas se relaciona indiretamente por meio das imagens arquetípicas, ou símbolos, presentes, por exemplo, em sonhos. Jacobi (1995) revela essa tonalidade quando pontua que nunca se pode encontrar o arquétipo em si de maneira direta, mas apenas indiretamente, quando se manifesta no símbolo ou no sintoma ou no complexo. Nada se pode dizer sobre algo, enquanto ele é inconsciente; por isso, qualquer declaração sobre o arquétipo permanece uma “conclusão retrospectiva”. Grande parte das confusões e mal-entendidos provém do fato de que repetidamente se deixa de prestar atenção à circunstância de que existe uma diferença característica entre a noção de “arquétipo” e a de “símbolo”. (JACOBI, 1995, p.73)

Ou seja, o símbolo em seu caráter inesgotável fornece a condição possível para ampliação de consciência através da expressão arquetípica que ele traz, uma vez que permite o processo dialético com o conteúdo simbólico, seja por meio de sonhos, sintomas e afins, dado que “por trás do sentido objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo.” (JACOBI, 1995, p.75).
O arquétipo do Si-mesmo portanto, especialmente por se tratar dos aspectos do homem consciente e inconsciente simultaneamente, e, apresentando o caráter de totalidade psíquica, expressa sua fenomenologia próximo ao que seria equivalente à imago Dei (EDINGER, 2020). Segundo Stein (2006, p. 144) “o Si-mesmo é transcendente, o que significa que não é definido pelo domínio psíquico nem está contido nele mas situa-se, pelo contrário, além dele e, num importante sentido, define-o”.

Nesta medida, é fortalecida a ideia da impossibilidade de uma precisa definição a respeito do arquétipo, uma vez que se encontra além dos limites da consciência com a qual se opera, entretanto, é possível analisar a influência dessa expressão a partir de manifestações na vida do indivíduo, seja a partir de sonhos; na análise de complexos presentes; sintomas e fantasias. A partir deste caráter, portanto, torna-se imprescindível traçar o aspecto comum destas condições que podem ser vias de expressões para a manifestação do Si-mesmo: o numinoso. A esse respeito, Jung (2015, §45) considera que a imagem da totalidade permanece imersa na inconsciência. É por isto que ela participa, por um lado, da natureza arcaica do inconsciente, enquanto que, por outro, na medida em que está contido no inconsciente, se situa no continuum espaço-tempo característico deste último. Estas duas propriedades são numinosas e, por isso mesmo, absolutamente determinantes para a consciência do eu para Corbett (2024, p. 27) o numinoso “pode também produzir um profundo sentimento de união ou unidade com o mundo e com as pessoas (…) outra preocupação possível é a percepção de que muitas coisas com que nos preocupávamos são realmente triviais”.

A partir deste cenário, é cabível observar o caráter peculiar do contato com o numinoso à medida em que apresenta a potencialidade tanto para despertar o sentimento de unidade e integração quanto para desestruturar paradigmas existentes na psique e estrutura do sujeito. Por isso a condição de ambivalência acerca deste contato se faz presente, constituindo-se de algo ““fascinante” e “assombroso” a um só tempo” (OTTO, 2007).

O ego nesta conjuntura passa a apresentar função indispensável à medida em que pode se tornar passível de se fortalecer ou desestruturar frente a esse tipo de encontro. Por isso, o ego enquanto centro da personalidade consciente (EDINGER, 2020), ao longo do desenvolvimento realiza o processo de diferenciação do Si-mesmo por meio de diversas etapas, pois “o desenvolvimento psicológico, em todas as suas fases, é um processo de redenção. O objetivo é redimir, pela percepção consciente, o Si-mesmo oculto, escondido na identificação inconsciente com o ego” (EGINGER, 2020, p. 128).

A primeira delas é compreendida pela fase urobórica (NEUMANN, E., 1954 apud EDINGER, E., 2020), em que o ego se encontra em um estado inflado pela identificação que possui com o Si-mesmo e, posteriormente, diferencia-se Dele, por meio da tensão entre os opostos, criando consciência como produto desta tensão (EDINGER, 1993).

Esta dinâmica se encontra mais profundamente considerada a partir da imagem de Uróboro, que se representa através de uma serpente engolindo a própria cauda em forma circular. Segundo Chevalier (2001, p. 816) a “animadora universal, não é apenas promotora de vida, mas da duração (…) é, sem dúvida, a primeira figuração, a mãe do Zodíaco”. A partir disto, é possível perceber que a condição urobórica, por se constituir de um estado primário, traz a condição indiferenciada em si, refletida na abrangência dos opostos que a compõe, por isso é compreendida como ““dialética material” da vida e da morte, a morte que sai da vida e a vida que sai da morte (CHEVALIER, 2001, p. 816).

Por isso, faz-se necessário destacar a importância do incômodo ou do conflito gerados na consciência à medida que se representam como a saída do estado paradisíaco para a situação de confronto com o Outro que surge nessa condição, agora diferenciada. O produto dessa tensão, por sua vez, surge como terceiro elemento: a consciência, pois “sempre que se vivencia o conflito entre atitudes contrárias, ou quando um desejo ou ideia pessoal está sendo contestado por um “outro”, seja de dentro ou de fora, existe a possibilidade de criar um novo aumento de consciência”. (EDINGER, 1993, p. 16)

Além disto, a emergência da consciência como um terceiro estado do produto desta tensão permite vivificar a perspectiva do aspecto numinoso, pois “neste estado de tensão psíquica, o símbolo numinoso pode fornecer à consciência uma atitude ou perspectiva nova, que transcende e transforma os opostos conflitantes” (JUNG, 1976 apud DOURLEY, 1985). Este contato, embora permeado pelo risco da inflação e pela possibilidade de desestruturação, fornece ampla coragem para que o indivíduo possa enfrentar e dar suporte para essa circunstância desafiadora.

Nessa dinâmica, o elemento central que realiza a conexão e a possibilidade de ampliação da consciência como terceiro produto da tensão dos opostos é a função transcendente, caracterizada como “uma ponte sobre a brecha existente entre o consciente e o inconsciente.” (JUNG, 2013, §121). Dado esse caráter, a função transcendente atua nesta relação como instrumento propulsor de transformação conforme viabiliza o contato com o inconsciente através de sonhos e fantasias, por exemplo, e possibilita a atuação do ego nesse contexto para integrar esses conteúdos (JUNG, 2014).

Para Holler (1995, p. 114) “O Principium Individuationis representa a tendência inerente à psique humana de não desistir da luz da consciência para cair novamente no abismo interno do nada primordial”, isso significa que o impulso para a individuação implica na prerrogativa de lidar com o conflito gerado pela tensão entre os opostos, de forma a promover a emancipação de um estado paradisíaco para outro diferenciado, demandando massiva valentia, como também citado anteriormente.
Essa circunstância exige, por sua vez, um cuidado peculiar para a tendência da unilateralização psíquica, considerando que “tendemos sempre à premissa injustificável de que, se fizermos apenas as coisas corretas, podemos ter um polo sem seu oposto.” (HOLLER, 1995, p. 119). Essa inclinação promove justamente o afastamento do contato com a outra polaridade, muitas vezes sombria, e, por isso, o risco não apenas da compensação, mas, em certas condições, da insanidade (HOLLER, 1995).

Sobre a significância da pluralidade psíquica, Dourley (1985, p. 10-11), assumindo por base as considerações de Jung, amplia que “em se tratando dos deuses, estes devem ser reconhecidos como aquelas forças da vida que são maiores que nossas faculdades conscientes; forças que requerem um diálogo com a consciência do ego. Estas forças procuram equilibrar e expandir o ego, num convite divino para crescer”

Nesta condição, os deuses citados podem se referir tanto a forças arquetípicas ora consteladas no indivíduo em determinados estados, quanto à pluralidade de estruturas internas que exigem conscientização, implicando na necessidade de transcender o estado unilateral.

Este contexto é ainda intensificado pela cultura ocidental, e muitas vezes pela teologia cristã, a partir do momento em que apresenta a propensão de dicotomizar bem e mal, separando-os ao invés de os integrar. Embora essa condição esteja com frequência projetada em imagens externas, tais como demônios; Diabo e afins, ganha massiva proporção quando analisamos essa dimensão no psiquismo à medida em que é possibilitada a reflexão do mal que nos compõe enquanto humanidade e a atitude, de afastamento ou confronto e integração, frente a isso.

Utilizando-se do mito cristão como exemplo,

As duas divindades polares de Deus e Demônio são peremptórias, porque forçam os seres humanos a suportar o conflito psíquico e tomar decisões difíceis. No entanto, esses conflitos e decisões não ocorrem num vácuo. A vida é vivida num campo de força de atividade, de acontecimentos, e essa corrente de acontecimentos equilibra e reconcilia de forma criativa os elementos aparentemente irreconciliáveis e conflitantes do viver. (HOLLER, 1995, p.124)

Por esta razão Holler (1995) enfatiza que o desenvolvimento da individualidade e o impulso para a individuação estão significativamente associados ao conflito. Além deste aspecto, Winckel (1985, p. 76) afirma que “a função positiva do mal é inerente ao mistério cristão, uma vez que está estreitamente ligada à Redenção. Sem o mal, a Redenção seria inútil”. Deste modo, torna-se imprescindível adentrar na ideia do mal e nas respectivas reverberações à medida em que trazem reinvenções na forma de se caminhar, para além da ótica do ego, pois “é descendo que nos elevamos; é pela nossa sombra que evoluímos; e é muitas vezes pelos nossos retrocessos que avançamos” (WINCKEL, 1985, p. 76).

A partir disso é cabível dimensionar a relevância da atuação do ego frente ao processo de ampliação de consciência, uma vez que não é suficiente o encontro com conteúdos do inconsciente, mas o confronto que concebe a tensão e, como produto, a transformação. Por esse motivo “a conscientização e vivência das fantasias determinam a assimilação das funções inferiores e inconscientes à consciência, causando efeitos profundos sobre a atitude consciente.” (JUNG, 2014, §359).

Esse processo de experenciar os afetos oriundos do confronto, que também podem promover a diferenciação, traz profunda dor e transformação pela saída de um estado paradisíaco e nutrido que a fase anterior contemplava para um estado de maior consciência, ressoando com alguns mitos que retratam a queda do homem (EDINGER, 2020), em que o lugar do conforto e da obediência absoluta são perdidos a fim de um maior desenvolvimento. Adão e Eva, por isso, tornam-se um exemplo clássico, principalmente diante da condição da transgressão diante da desobediência de uma condição pré-estabelecida que os levou à expulsão do paraíso.

A aquisição do fruto da árvore do conhecimento como símbolo central desse mito pode ser analisada como o nascimento da consciência conjuntamente à percepção dos opostos (EDINGER, 1990), condição sine qua non do desenvolvimento psíquico, à medida em que desafia e sacrifica estágios do desenvolvimento sob pena de culpa e punição a fim de um estado ampliado de consciência a partir do conhecimento adquirido. Não para menos, Edinger (2020, p. 42) sinaliza que “a obtenção de consciência é um crime, um ato de hybris contra os poderes estabelecidos; mas é um crime necessário, que leva a uma necessária alienação com relação ao estado inconsciente natural de unidade”.

Através desse paradigma o processo de individuação se contempla e é por meio desta condição que se observa a redenção do ego, quando este se faz “bastante forte para resistir ao assalto dos conteúdos inconscientes, sem que se afrouxe desastrosamente sua contextura (…). Neste caso, há uma alteração não só dos conteúdos inconscientes, mas também do ego” (JUNG, 2000, §430). Por esta razão é possível conjecturar o quanto essa demanda requer um processo relacionado à humildade do indivíduo perante a si, dado que “o caminho que conduz a este conhecimento de si mesmo é semeado de dificuldades. Trata-se de um conhecimento despojado de auto-suficiência, de um conhecimento humilde” (WINCKEL, 1985, p.58)

2.1. Redenção no mito cristão

Algumas passagens ou simbolismos presentes no mito cristão ilustram o paradigma exposto até esse momento, tal como pode ser visto em Jó, uma vez que, embora o ego se diferencie do Si-mesmo ao longo do desenvolvimento psíquico, paradoxalmente, submete-se a Ele.

Jó, homem temente e temeroso a Deus, muito rico e bem abastado, recebe uma série de más notícias por mensageiros e se mantém resignado diante das perdas (SILVA, 2007), demonstrando nesse momento o estado inflado e indiferenciado do ego à medida em que se identifica com o Si-mesmo e se afasta da própria condição de dor quando profere “Iahweh o deu, Iahweh o tirou, bendito seja o nome de Iahweh” (BIBLIA DE JERUSALÉM, 2004 apud SILVA, 2007), até o momento em que as chagas o afetam diretamente, representando a irrupção do inconsciente sobre o ego (SILVA, 2007).

Apesar disso, permanece ainda convicto da própria inocência, mostrando-se inconsciente da própria sombra, na permanência de um estado inflado. Somente após a entrada dos três amigos que representam essa dimensão psíquica ao proferirem conteúdos aquém da consciência de Jó é que ele passa para o estado de alienação do ego, em que “os encontros com a realidade frustram as expectativas infladas e provocam um estranhamento entre o ego e o Si mesmo” (EDINGER, 2020, p. 55) e, após o momento de confronto com os aspectos sombrios marcado por período de sentimento suicida e esvaziamento de significado (SILVA, 2007) é que a quarta figura, Eliú, aparece como representação da quarta função, precursora do contato com o Self, ou Javé.

Por fim, na experiência com o numinoso no encontro de Jó e Javé é possível conjecturar o processo de redenção sobre duas perspectivas: quando Jó confronta os próprios conteúdos e sucumbe a si, dando suporte aos afetos diante do fogo de Deus que caiu dos céus (EDINGER, 2020), e quando Javé é conscientizado nessa relação, pois “encontrar-se com o Si-mesmo tem efeito redentor ou resgatador sobre o ego porque liberta a pessoa de estado inconsciente e revela o significado. O processo é recíproco, no qual o Si-mesmo é redimido pelo ego.” (EDINGER, 1990, p.195-196).

A dialética entre ego e Si-mesmo, portanto, assume fator central nesta dimensão, considerando que à medida que o ego é sacrificado às exigências do Si-mesmo maior emergente, ele é, ou pode ser, uma vítima voluntária do Si-mesmo, que atua como sacerdote do ato sacrificial. Mas o processo de encarnação do ego finito implica também um sacrifício por parte do Si-mesmo (DOURLEY, 1985, p. 98)

Por isso é possível reflexionar o quanto o ato sacrificial amplia a ideia de redenção quando permite analisar que, neste processo, tanto o ego quando Self são atravessados pela condição de sacrifício a fim da ampliação de consciência para maior desenvolvimento, tendo em vista que “é o sofrimento do ego frente às exigências do Si-mesmo em vista de um crescimento equilibrado” (DOURLEY, 1985, p. 98).

Ou seja, por mais que a transgressão, ou o sentido do “pecado original” (EDINGER, 2020) como metáfora para o desenvolvimento, possam ser condições inevitáveis para a ampliação de consciência através da diferenciação, a redenção do ego diante do arquétipo da totalidade se mostra concomitante a essa condição. A respeito da experiência do ego frente a essa conjuntura, Jung (2000) teoriza que esta experiência paralisa uma vontade por demais egocêntrica e convence o ego de que, apesar de todas as dificuldades, é sempre melhor recuar para um segundo lugar, do que se empenhar em combate sem esperança, o qual termina invariavelmente em derrota. Deste modo a vontade enquanto energia disponível se submete paulatinamente ao fator mais forte, isto é, à nova figura da totalidade que eu chamei de Self (JUNG, 2000, § 430)

“Em outras palavras: o ego pode cooperar com a fonte da redenção – (…) – mas nunca pode coagi-la” (DOURLEY, 1985, p. 110), por isso a redenção experenciada neste estado arrebatador pode ser examinada sob o véu do encontro com o numinoso, uma vez que este estado “é irracional, ou seja, não pode ser explicitado em conceitos, somente poderá ser indicado pela reação especial de sentimento desencadeado pela psique: “Sua natureza é do tipo que arrebata e move a psique humana com tal e tal sentimento”” (OTTO, 2007, p. 44).

Entretanto, a peculiaridade do numinoso também explora condições assombrosas, em que o ego poderia não só sucumbir, como se desestruturar nessa medida. Otto (2007) abarca essa medida através do mysterium tremendum et fascinius, no qual o encontro com o numinoso revela mistérios arrepiantes e fascinantes, concomitantemente.

Essa sensação pode ser uma suave maré a invadir nosso ânimo, num estado de espírito a pairar em profunda devoção meditativa. Pode passar para um estado d’alma a fluir continuamente, em duradouro frêmito, até se desvanecer, deixando a alma novamente no profano. Mas também pode eclodir do fundo da alma em surtos e convulsões. (OTTO, 2007, p. 45)

Por sua vez, pensar no assombro constelado pela presença do numinoso pode ser uma via de proteger o ego contra possíveis rupturas, pois “os sentimentos de temor reverencial, terror e assombro que acompanham uma experiência numinosa são importantes porque nos ajudam a identificar a experiência como sagrada. Essas emoções nos dizem que a experiência foi encarnada” (CORBETT, 2024, p.33)

Outro exemplo de figura redentora a ser citada é a imagem de Jesus menino, pois reflete os aspectos da criança divina constelados com função fundamental na dinâmica psíquica. Deste modo, considerada a dimensão arquetípica conjecturada nessa questão, cabe mencionar a configuração plural que pode se apresentar, dado como o contato com o numinoso contemplou anteriormente: uma experiência que pode ser terrível e assombrosa como fascinante e envolvente. Em uma Análise mais profunda, Jung (2011) explora que a consciência, ao excluir conteúdo passíveis de conscientização pela seletividade que possui, traz o risco de unilateralização e desenraizamento, “razão pela qual necessita de uma compensação através do estado infantil ainda presente” (JUNG, 2011, p. 125). Isso se dá pelo que oferece o motivo da criança:
Não representa apenas algo que existiu no passado longínquo, mas também algo presente; não é somente um vestígio, mas um sistema que funciona ainda, destinado a compensar ou corrigir as unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da consciência. (JUNG, 2011, p. 124-125)

Por isso a dimensão da atuação da criança divina no psiquismo se dá pela tensão entre os opostos, pois, em função da unilateralidade com a qual a consciência passa a se encontrar, e emergência de um produto dessa tensão passa a se fazer. “Disso resulta o caráter “numinoso” da criança. Um conteúdo importante, mas desconhecido, exerce sempre o efeito fascinante e secreto sobre a consciência” (JUNG, 2011, p.131).

Neste aspecto, a ambivalência deste símbolo unificador e, ao mesmo tempo, redentor (JUNG, 2011) traz não só a condição miraculosa, mas ameaçadora, encontrada quando o ego pode se sentir ameaçado frente ao novo, implicando uma nova estrutura e, por isso, a condição de se redimir a ela. Essa instância pode ser percebida quando Jung (2011) discorre sobre a neofobia (terror do que é novo) e o tradicionalismo serem duas características do homem primitivo, de forma que o progressismo, embora possa ser propício para novos caminhos de desenvolvimento, pode igualmente ser intimidador, levando em conta que
O ideal progressista é sempre mais abstrato, antinatural e mais “amoral”, na medida em que exige infidelidade à tradição. O progresso conquistado pela vontade é sempre convulsivo. A característica do retrógrado é mais próxima à naturalidade, sempre ameaçada, porém, de um despertar doloroso. (JUNG, 2011, p. 126).

Tendo em vista a redenção como alvo e propósito, trazer importância de uma estrutura egóica consistente neste contexto é fundamental à medida que, desprovido dessa condição, é possível pensar em uma dissolução frente à força arquetípica constelada ou ainda, na paralização frente ao próprio conflito gerado entre a tensão dos opostos, como mostra Jung (2011, p. 134) ao analisar que “a consciência fica aprisionada em sua situação de conflito e os poderes que aí se digladiam parecem ser tão grandes que o conteúdo da “criança emerge isolado, sem relação alguma com os fatores da consciência”.

Frente a esta ameaça, portanto, a tentativa de aniquilar a aparição da criança divina seria a tentativa de aniquilar o próprio desenvolvimento, principalmente porque “prepara uma futura transformação da personalidade (…) é, portanto, um símbolo unificador dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completude” (JUNG, 2011, p. 127), como também um símbolo redentor. Essa transformação, por sua vez, exige que determinadas instâncias sejam abandonadas.
Conforme a consciência se diferencia, desenraiza-se, tal como significa sair do Paraíso no mito de Adão e Eva. Ou seja, é preciso distanciar-se das terras natais para que a autonomia seja alcançada, processo que envolve e demanda suporte necessário para os afetos frustrados. Jung (2011, p. 132) explora essa dimensão quando pondera que o conflito não é superado, portanto, pelo fato de a consciência ficar presa aos opostos; por este motivo, necessita de um símbolo que lhe mostre a exigência do desligamento da origem. Na medida em que o símbolo da “criança” fascina e se apodera do inconsciente, seu efeito redentor passa à consciência e realiza a saída da situação de conflito, de que a consciência não era capaz

Nota-se, por isto, o quanto o processo de redenção e seu efeito redentor se encontram nas passagens e no dinamismo, entre o conflito paralisante e a potência de se transformar frente a esta condição, de forma a exercer influência peculiar e profunda quando se representa no motivo da criança, especialmente quando este se revela como “o mais forte e inelutável impulso para o ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo” (JUNG, 2011, p. 135).

Por isso é possível mensurar determinada atemporalidade na redenção, considerando que, em termos contemporâneos, é possível encontrá-la na vivência das angústias, sejam elas do cotidiano; das situações excepcionais; da doença; morte e afins de temas arquetípicos e no enfrentamento do próprio paradoxo diante da constelação do numinoso quando se apresenta, pois, como cita Anéas (2022, p. 56)

Experimentar Deus é experimentá-lo no caos da nossa interioridade, sem negar o caos. Não é negar os nossos demônios, mas enfrentá-los pela fé, com coragem. Não é deixar de duvidar, mas sim dar o salto e encarar a existência com tudo o que ela tem para oferecer, inclusive o medo dela mesma. É dar ouvidos para as indagações mais dramáticas ou seja, tanto em instâncias internas, quando a redenção se faz presente no suporte a crises existenciais; angústias e na chegada do novo que desestrutura, quanto em âmbitos externos, é possível notar a presença dessa experiência naquilo que demanda redenção, tal como ilustra Anéas (2022, p. 57) ao tratar do exemplo da Teologia da Libertação, que se constitui como “uma teologia da práxis, em que a reflexão que passa pela observação atenta dos fenômenos sociais e uma crítica precisa, necessariamente, desembocar uma ação no mundo política (não necessariamente partidária)”.

Dessa forma, é cabível acrescentar uma ótica participante no paradigma da redenção à medida em que se amplia para o ambiente social, de forma que as lutas humanas pela libertação, pela conquista de direitos, contrária a toda e qualquer força social opressora e autoritária podem encontrar nas chamadas teologias latino-americanas um Redentor que salva o oprimido e promove justiça em sociedades reais e em mundos concretos (ANÉAS, 2022, p. 59)

Pelo fato desta perspectiva culminar com os aspectos da individuação (JUNG, 2011), far-se-á favorecedor dessas ampliações o estudo do simbolismo alquímico por meio da opus – que elucidará a projeção sobre a matéria do que acontece neste processo –, uma vez que a “alquimia é uma ciência natural que representa uma tentativa de entendimento de fenômenos materiais na natureza” (VON FRANZ, 2022, p.43).

3. Alquimia e redenção: A calcinatio e os processos alquímicos.

Embora não se saiba definidamente a origem da alquimia, Vargas (2017) a concebe como um paralelo ao despertar da consciência juntamente ao uso de recursos naturais, refletindo a interação entre o homem e o meio natural. Concomitantemente, nesse processo surge o paradoxo daquilo que não está na consciência por meio de tudo o que subjaz a ela, por meio, por exemplo, do “medo do que permanece desconhecido e fora dela, ou seja, o medo da noite com seus sonhos e da morte” (VARGAS, 2017) e, essa tensão de opostos vivida na experiência com as dicotomias, é justamente o cenário que se monta o desenvolvimento do indivíduo através de estruturas que irão se deparar com a redenção.

Dessa forma, “se a alquimia tem origem nas técnicas arcaicas mágico-míticas, ela só pode instituir-se como um saber, a partir de uma sabedoria que procura compreender as relações cósmicas do homem com a matéria” (VARGAS, 2017). Levando em consideração esse contexto, as ressonâncias e divergências da alquimia diante da obra da redenção sobre a teologia cristã e outras concepções abordadas se darão a fim de compreender, a partir de uma perspectiva psicológica, a dinâmica desse processo do homem com a matéria, como representação e condição sine qua non da realidade interna do sujeito.

Segundo Edinger (2008, p. 8), “a alquimia nos oferece uma percepção única das profundezas da psique inconsciente”, pois a orientação extrovertida sobre as operações alquímicas realizadas pelos alquimistas é compreendida, em uma perspectiva introvertida, como o processo de individuação, em que cada etapa alquímica se configura como aspecto dessa dimensão, desde o encontro com a prima matéria, em que o ego se encontra em estado indiferenciado em relação ao Si-mesmo, até que, pela tensão dos opostos, passa a se diferenciar, quando, por fim, “à medida em que o ego amadurece, a situação muda gradualmente e o indivíduo torna-se capaz de assumir a tarefa de ser portador do mal (…) contribuindo assim para a criação da coniunctio” (EDINGER, 2008, p.15), operação responsável pela união dos opostos que propicia, consequentemente, o encontro com o Self.
Nesta compreensão, é possível apontar a ressonância de semelhanças com a fase urobórica do desenvolvimento da personalidade, explorada anteriormente, dado o caráter indiferenciado que ambas abarcam, e, ainda, apontar que, embora existam diversas contradições acerca da definição e origem da prima matéria (SCHWARTZ-SALANT, 2024), muitos teóricos a associam ao caos. Essa colocação assume massiva importância à medida em que se a experiência do numinoso positivo deve ter alguma chance de sobreviver e criar uma nova estrutura, então deve-se não apenas sobreviver a esses estados caóticos da mente, mas antigas estruturas devem ser desfeitas pelo caos para permitir que o novo encarne. Portanto, ser capaz de enfrentar e sobreviver ao caos e seus terrores é essencial. (SCHWARTZ-SALANT, 2024, p. 74)

Desse modo, é possível notar que tanto o contato com aspectos caóticos quanto o suporte dos afetos provenientes deles são condições primordiais para o encontro com o numinoso, e no invólucro deste processo, a constelação da redenção se revela, tal como expressa Otto (2007, p.199) quando discorre que “os materiais abrangidos pelo impulso religioso, muitas vezes, começam sendo de natureza terrena, mundana”, e, além disso, quando aponta que a inquietação do sujeito na direção que
busca a salvação final e definitiva, o elemento a urgir constantemente, a separar-se e elevar-se acima das suas origens, são justamente suas manifestações características, revelando sua essência interior, a qual não é outra coisa senão autêntico impulso para a redenção (OTTO, 2007, p. 199)

Outro aspecto notável na obra da redenção se dá quando Jung (2011) estabelece a relação entre redenção e anima mundi (“alma do mundo”) à medida em que “o homem arca com o dever de executar o “opus” da redenção, atribuindo o estado de sofrimento e a consequente necessidade de redenção à “anima mundi” presa na matéria” (JUNG, 2011, §414). Ou seja, nota-se a relação dialética na redenção a partir da condição que tanto o homem quanto a matéria são redimidos, necessitando concomitantemente um do outro, tal como a passagem de Jó reflete esse exemplo. Nessa representação, por sua vez, a necessidade da redenção da anima mundi assume caráter ainda mais emergente, considerando que para o alquimista não é o homem o primeiro a necessitar da redenção, e sim a divindade, perdida e adormecida na matéria (…) ele não visa sua própria salvação pela graça de Deus, mas a libertação de Deus das trevas da matéria. Ao realizar essa obra miraculosa, ele se beneficia secundariamente de seu efeito salutar (JUNG, 2011, § 420)

Entretanto, na condição do homem dentro desta dialética pode-se dizer que a função do ego assume atribuição indispensável, pois, por mais que a perspectiva seja orientada para o Si-mesmo, é necessária não somente participação, mas colaboração massiva nessa estrutura com o objetivo de criar consciência. Essa cooperação exige uma atitude consciente para enfrentar os opostos, os conflitos e contradições (VON FRANZ, 2022), pois só assim será possível o estabelecimento de alguma conexão com o inconsciente.

Essa postura, por sua vez, significa “agir de acordo com nossa convicção consciente, mas possuindo já humildade bastante para manter a porta aberta e admitir a prova de que estamos errados” (VON FRANZ, 2022, p. 243). Por essa via, tal como é possível conceber etapas do desenvolvimento psíquico como participantes dinâmicas do processo individuação, como discorrido anteriormente, é possível realizar paralelos acerca do mesmo processo em relação às operações alquímicas, que se constituem por calcinatio, solutio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio, cuja a finalidade se mostra no caminho da “ressurreição, o surgimento do novo, e seguem em direção à transformação, demandando um compromisso consigo mesmo e com o outro, e um reposicionamento do ego para se ajustar às demandas dos mundos externo e interno.” (PESSOA, 2022).

Ademais, segundo Jung (2011), o processo alquímico se constitui de três fases, sendo elas Nigredo; Albedo e Rubedo. Na primeira fase, “a lógica é a da busca de convívio e diálogo mínimos com os elementos da realidade com que se vive conflituosamente” (BASSOLI, 2022, p. 107), ou seja, nessa fase é possível abranger o encontro com a sombra, com a prima matéria e a imersão no caos originário. Em seguida, embora as fases não sigam uma sequência linear necessariamente, a Albedo corresponde à fase do embranquecimento, em que se é possível “uma desidentificação da materialidade, seja vista dentro de si ou no mundo exterior” (BASSOLI, 2022, p. 108). Nesta condição é possível notar o estado de diferenciação e a presença de símbolos numinosos. Já a Rubedo alcança questões de contato profundo com a própria identidade (BASSOLI, 2022, p. 108), constelando imagens de casamento e manifestando com maior destaque a operação coniunctio.

É a partir desta compreensão, portanto, que se torna possível adentrar nas reflexões acerca do que se dará no processo de transformação da prima materia2 através das operações alquímicas como projeções de fatores psíquicos. Especificamente, a operação alquímica da calcinatio será contemplada com maior vigor, pois, como descreve Pessoa (2022), “na alquimia, a energia transformadora é representada pela arte do fogo, a qual se faz presente nas imagens de fornos, calor, labaredas.”
A calcinação é originária de um processo químico que consiste no aquecimento intenso de um sólido com o objetivo de retirar dele a água e demais substâncias voláteis (EDINGER 2006), restando, ao final do procedimento, um pó fino e seco. Essa operação recebe a devida denominação em função do exemplo clássico deste procedimento ser utilizado sobre o aquecimento da pedra calcária (CaCO3) para produzir cal viva (CaO) (EDINGER, 2006). Além disso, a associação da calcinação ao fogo é dada tanto pelo intenso aquecimento exigido pelo procedimento quanto pelo fato de a cal viva gerar intenso calor quando misturada em água, instigando os alquimistas a cogitarem a presença desse elemento na substância (EDINGER, 2006).

Deste modo, a queima de um determinado sólido, retirando-se a água e outras substâncias voláteis, e a obtenção de um resíduo fino e seco resultantes deste processo na química, aqui são consumados através do simbolismo alquímico, quando o fogo é contemplado como elemento purgador e branqueador, agindo inicialmente sobre a prima materia, na nigredo3 até, progressivamente, alcançar a albedo. Edinger (2008, p. 110) demonstra essa relação:
O produto final das cinzas possui associações simbólicas muito interessantes. Ele corresponde ao que os alquimistas chamam de “terra branca folheada”, que corresponde à terra purificada, o corpo purificado e, apesar das associações comuns às cinzas – como desespero, luto e vazio -, o outro conjunto de associações são de extremo valor; eles representam o objetivo total da existência terrena.

A respeito das ressonâncias entre o simbolismo do purgatório, na perspectiva da teologia, com a calcinatio, Edinder (2006, apud BÍBLIA, Coríntios 3:11-15) percorre pela ideia de que “o fogo provará qual seja a obra de cada um. Se a obra que alguém edificou sobre esse fundamento permanecer, esse terá uma recompensa. Se a obra de alguém se queimar, esse sofrerá detrimento, mas se salvará, embora somente através do fogo”.

A partir dessa condição, é possível analisar a função do fogo não somente como elemento purificador e purgador, mas também como redentor, especialmente quando abrange na ideia da queima a frustração dos desejos instintivos como forma de desenvolvimento (EDINGER, 2006).

Inicialmente, ocorre a prevalência dos desejos instintivos, ou a manifestação de energias arquetípicas, identificadas com o ego (EDINGER, 2006), sendo possível percebê-los através da expressão por desejos de prazer, poder e afins. Para isso
A necessária frustração do desejo luxurioso ou concupiscência é a principal característica do estágio da calcinatio. Primeiro, a substância deve ser localizada; isto é, o desejo, exigência ou expectativa inconscientes, não reconhecidos, precisam ser identificados e afirmados. A premência instintiva que diz “eu quero” ou “faço jus a isso” deve ser plenamente aceita pelo ego. (EDINGER, 2006, p.61 – 62.)

A partir desta queima é possível ponderar a experiência de redenção de um ego que precisa suportar essa condição com força e clemência, uma vez que, para a ampliação de consciência como forma de desenvolvimento na dinâmica com o Si-mesmo, um ego estruturado é indispensável, dado que “um ego fraco é sobremodo vulnerável ao ser consumido pelo encontro com um afeto intenso” (EDINGER, 2006, p.45). Caso consiga, encontrará como produto um processo também purificador e sagrado (EDINGER, 2006), por isso muitas vezes o simbolismo do fogo é encontrado em mitos e religiões que retratam o processo de destruição e transformação na Índia, Agni é o deus hindu do fogo, aquele a quem se oferece o sacrifício. No pensamento hindu, “através do fogo, o homem pode comunicar-se com estados superiores do ser, com os deuses e com as esferas celestes. Por meio do fogo, pode participar da vida cósmica, cooperar com os deuses. Pode alimentá-los através da boca de fogo. ‘Agni é a boca dos deuses, através dessa boca eles tomam alento’ “ (KAPISTHALA-KATHA & SATAPABHA BRAHMANA, 1964, p. 64 apud EDINGER, 2006, p.58)

4. Redenção, alquimia e mitologia: interfaces do ser

Percorrendo pelo fogo que purga, mas que purifica através da redenção é que se dá o processo de transformação, pois “o fogo é um importante elemento de transmutação, visto que a consciência também é fogo, uma vez que, a partir dela, os processos são diferenciados e, ao mesmo tempo, separa o homem do restante dos animais e o integra também à natureza” (MELLO, 2022)
Na mitologia iorubá, Ogum é um deus guerreiro, conhecido como deus da guerra e ferreiro, comumente associado, na mitologia romana, a Marte (ZACHARIAS, 1998). Enquanto qualidade de ferreiro, por sua vez, encontra-se relacionado intimamente ao elemento fogo pela forja dos metais ser realizada através deste elemento, por isso costuma ser aproximado em outros mitos por perspectivas semelhantes, como observado na mitologia grega com Hefesto, filho de Zeus e Hera, deus do fogo, dos ferreiros e artesãos (ZACHARIAS, 1998, p. 148).

Para além disso, um dos mitos de Ogum, que retrata a forma pela qual se tornou Orixá, contribui para ilustrar como o simbolismo do fogo se encontra na manifestação de afetos intensos em uma circunstância específica e como o processo de redenção é encontrado na calcinação desses afetos, culminando no encontro com o sagrado.

Após instalar seu filho no trono de Irê, Ogum voltou a guerrear por muitos anos. Quando voltou a Irê, após longa ausência, ele não reconheceu o lugar. Por infelicidade, no dia de sua chegada, celebrava-se uma cerimônia, na qual todo mundo devia guardar silêncio completo. Ogum tinha fome e sede. Ele viu as jarras de vinho de palma, mas não sabia que elas estavam vazias. O silêncio geral pareceu-lhe sinal de desprezo. Ogum, cuja paciência é curta, encolerizou-se. Quebrou as jarras com golpes de espada e cortou a cabeça das pessoas. A cerimônia tendo acabado, apareceu, finalmente, o filho de Ogum e ofereceu-lhe seus pratos prediletos: caracóis e feijão, regados com dendê; tudo acompanhado de muito vinho de palma. “Ogum, violento guerreiro, o homem louco dos músculos de aço. Ogum, que tendo água em casa, lava-se com sangue!” “Os prazeres de Ogum são o combate e as brigas. O terrível orixá, que morde a si mesmo sem dó! Ogum mata o marido no fogo e a mulher no fogareiro. Ogum mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada!” Ogum, arrependido e calmo, lamentou seus atos de violência, e disse que já vivera bastante, que viera agora o tempo de repousar. Ele baixou, então, sua espada e desapareceu sob a terra. Ogum tomara-se um orixá (VERGER, 1997)

No mito, é possível perceber o alcance da cólera de Ogum ao não ser servido quando retornou ao próprio reino, onde havia deixado o filho como herdeiro. O domínio da ira e impulsividade nesse sentido traz ressonâncias com os aspectos destrutivos do fogo, uma vez que se constela a queima enquanto extermínio de algo, “que queima sem consumir, embora exclua para sempre a possibilidade de regeneração” (CHEVALIER, 2001), assim como Ogum, que, consumido pelo fogo colérico, cortou as cabeças daqueles que não o serviram quando esta era uma reivindicação. Neste aspecto, também é possível observar a influência da inflação do ego neste sentido à medida em que “equivale a considerar-se a si mesmo como total e completo e, portanto, como um deus, capaz de todas as coisas” (EDINGER, 1995).

Por sua vez, é interessante notar que, somente quando Ogum se redime, lamenta e purga no próprio fogo purificador, é que passa a ser concebido como Orixá, expressando, genuinamente, o encontro com o sagrado. Nesta medida, segundo o mito, Ogum tem aspectos de si transformados (“Ogum, arrependido e calmo”) a partir da própria da redenção, quando o fogo antes constelado sob a forma de cólera agora é percebido como purificador. Sobre isso, Edinger (2006, p. 63) atenta que
As energias da psique arquetípica primeiro aparece em estado de identificação com o ego, exprimindo-se como desejos de prazer para o ego, de poder para o ego. O fogo da calcinatio purga essas identificações e impulsos da raiz, ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou transpessoal

Por essa razão, é possível notar o quanto a coragem de Ogum se mostrou como elemento fundamental dessa condição (MELLO, 2022), visto que ressoa com a atitude esperada do ego frente à condição de transformação. Quando Campbell (1990) estuda que os mitos se relacionam com os estágios de vida e dão direção para os processos de desenvolvimento que se apresentam nela, traz a importância de, neste caso, examinar-se o enfrentamento de Ogum diante de si que queima no próprio fogo como postura primordial do ego frente ao próprio processo de individuação, dado que “o fogo então toma o lugar espiritual e não somente terreno” (MELLO, 2022).

A partir dessa condição, portanto, é concebível pontuar o quanto o processo de redenção, apesar de se revelar na esfera do inconsciente à medida em que o ego perde a ilusão de poder posteriormente ao estágio de inflação, apresenta-se simultaneamente na consciência a partir da conduta que se terá diante do enfrentamento com os opostos que surgirão, prontamente disposto a sucumbir ao fogo purgador que se apresentará nessa condição para que possa, enfim, transformar-se e ser transformado.
Por isso é possível dimensionar que a jornada de Ogum assume característica lunar, considerando que, “diferentemente do herói solar, a narrativa de Ogum mostra-o na jornada em regresso para a sua casa e a sua intolerância ao interdito do silêncio e suas ações o colocam como lugar lunar” (MELLO, 2024). Essa configuração corrobora com a perspectiva de análise da redenção sob um viés introvertido conforme possibilita a análise de aspectos internos que se redimem e que são redimidos, simultaneamente.

Essa via se reflete quando Mello (2024) explora que:
O monstro, dragão que Ogum enfrenta não está no outro, todavia nele mesmo. O orixá tem que se deparar-se em si mesmo, refletir e perceber o custo de suas ações e como elas impactaram toda a história, causando, assim, o desenrolar dos fatos. Oras, se o dragão reside em si mesmo, eis um importante aspectos trazido pelo mito que leva ao pensamento de que há inúmeros dragões residem nas profundezas da psique e que estão ali, à espreita de serem descobertos pelo indivíduo que, se não os reconhecer e personificá-los, acabará por ser tomado por eles, tal como Ogum foi tomado pelo seu ímpeto de fúria nesta condição, os dragões podem ser analisados como os aspectos internos a serem redimidos através do fogo, em que a queima exige o suporte da dor, tal como Ogum precisou se deparar ao olhar para si nas próprias ações com o mundo dilacerado. O processo de redenção, por sua vez, trazido pelo confronto com os próprios dragões e, posteriormente, pela conscientização e integração deles amplia a discussão para a dimensão sombria que a redenção abarca.

À vista disto, é possível dimensionar o quanto a jornada de Ogum pode se representar no que Winckel (1985) descreve como travessia noturna, considerando uma fase da trajetória que ocorre em lugares obscuros, na esfera do inconsciente. Neste cenário, ocorre “a morte do ego ou de uma parte do ego consciente (…) é o momento da grande transmutação, no qual a pessoa vai se regenerar” (WINCKEL, 1985, p. 105).

Para tanto, a redenção é condição sine qua non, uma vez que é preciso se render e fazer morrer aspectos de si, para que outras configurações possam emergir, conduzindo ao nascimento da criança espiritual (WINCKEL, 1985), que representa justamente a perspectiva do novo e desconhecido, permeado pela constelação do numinoso.

É interessante notar que neste contexto há uma ruptura com determinados paradigmas alicerçados no dogma cristão presentes no maniqueísmo entre “bem” e “mal” como orientadores da consciência, em que um prevalece sobre a condição do outro, à medida em que Ogum ensina que ambos convivem lado a lado, de forma a não haver “necessidade de uma projeção do mal em uma figura diabólica ou demoníaca, ele está ali, convivendo em conjunto com o indivíduo, dentro dele.” (MELLO, 2024).
Essa discussão torna imprescindível explorar o quanto a possibilidade de redenção, por essa via, pode se deparar refletida na dimensão da sombra, definida como o aspecto indesejado e ameaçador da personalidade (SANFORD, 1988), sendo também “uma parte inferior da personalidade. Por isso, é reprimida, devido a uma intensa resistência.” (JUNG, 2013, §78). Essa repressão se dá, por sua vez, em função dos conteúdos que predominam na consciência, principalmente relacionados a particularidades que são mais aceitas, pessoal ou socialmente. Dessa forma, características ou partes que se opõe a isso, passam a constituir e formar a sombra.

Entretando, é indispensável considerar a importância dos aspectos sombrios ao passo que essa estrutura pode fomentar capacidades potentes e criativas do sujeito. A sombra, por exemplo, pode se constituir como a vida não vivida (SANFORD, 1988), dimensionando a possibilidade de existência de características que podem ser integradas à consciência e, por isso, fortalecer a personalidade, pois, “sem nossa sombra, então, podemos bloquear a capacidade de reagirmos de forma saudável em situações na vida que começam a se tornar intoleráveis para nosso espírito” (SANFORD, 1988, p. 56).
Nesse sentido, Ogum vivendo o estado inflado ao ser tomado pela raiva de não ser servido na ocasião, passa a vivenciar em si a própria condição sombria quando aniquila o próprio povo. Contudo, a condição que o queima é a mesma da própria redenção, considerando que, a partir disto, tornou-se Orixá.

Sanford (1988, p. 63) pontua a importância do contato com a sombra a partir da compreensão de que
A maneira mais comum com que as pessoas tentam lidar com o problema da sombra é simplesmente negar a sua existência. Isso acontece porque o despertar da sombra traz culpa e tensão, e nos força a uma difícil tarefa espiritual e psicológica. Por outro lado, a negação da sombra não resolve o problema, mas simplesmente deixa-o pior. Por conseguinte, não só perdemos o contato com os aspectos positivos desse lado obscuro de nós mesmos, como também o projetamos em outras pessoas
Por esta razão Ogum desperta profundo ensinamento diante do enfrentamento de si no processo de vida, considerando que sustentar a responsabilidade dos próprios atos pode implicar em se deparar com os aspectos sombrios de si muitas vezes projetados em terceiros, como também significa a possibilidade de integrar essa condição ao se render a ela, e, diante disto, transformar-se. Através do reconhecimento dos lados sombrios é que uma mudança poderosa pode ocorrer em nível psíquico (SANFORD, 1988), estando o ato de se render intrinsecamente ligado a este panorama.

Considerações finais

O paradigma judaico-cristão vigente e presente com forte influência na sociedade ocidental corrobora para compreensões de inúmeras dinâmicas na psique do sujeito presentes dentro deste cenário, de forma a possibilitar análises mais profundas e ampliadas nesta dimensão, para além de perspectivas que poderiam facilmente limitar e reduzir o indivíduo sob esta mesma compreensão. Por isso o trabalho de Carl Gustav Jung torna-se fundamental e norte destes escritos, pois amplia discussões que poderiam ser restritivas e simplistas para dinâmicas complexas e profundas ao corroborar com o empirismo nos estudos da religião; da psique; dos símbolos; mitologia e afins.

É desta forma que o aspecto da redenção, alcançado em diversos mitos ocidentais ou não, reverbera de forma a trazer um estado bastante peculiar: a impossibilidade. Pois, quando há impossibilidade e, com isso, frequentemente a angústia; o desespero; a dúvida e o medo, o ego perde a ilusão de onipotência, dando margem para que o inconsciente possa se apresentar de forma marcante e, diante disto, convidar, ou, muitas vezes, convocar à redenção.

Nesta condição, a operação alquímica da calcinatio se configura à medida em que a queima arde e destrói aquilo que é desnecessário; antigo e inflado, tal como ilustrou Edinger (2006) ao trazer a imagem do purgatório, deixando somente aquilo que nos é necessário para algum fim, como retrata a fase alquímica da albedo pela imagem da transformação: A prima materia, o caos interno e condições que precisam de redenção são aquecidas ao extremo até que se tornem um pó branco fino e seco, transformado. O ego se desestrutura nessa instância conforme é confrontado com o esgotamento dos próprios recursos conhecidos, encontrando-se impossibilitado, mas se fortalece concomitantemente com a introdução do novo, quando se redime e passa a adquirir novas ferramentas e recursos, por isso o paradoxo se estabelece e a redenção se constela. Ao mesmo tempo, o inconsciente também é transformado à medida em que se revela para essa estrutura, pois se reflete nela e é refletido por ela, tal como ilustra a passagem de Jó.

Desse modo, a contemplação dos paradoxos se torna o terreno fértil para redenção e para o germinar de possibilidades internas, quando antigas estruturas são libertadas e transformadas em novas, para que possamos trilhar na jornada individual somente com o que nos for necessário a partir deste processo.